24 de dezembro de 2011

Bate o Sino: Um Natal Bem Brasileiro





Pariticipam do Clipe:
Abará - Salvador - Bahia
Ciço Gnomo - Juazeiro do Norte - Ceará
Ciço Zabumbeiro e Germano - Juazeiro - Ceará
Didi Moraes - Fortaleza - Ceará
Dú e Jó - Salvador- Bahia
Juninho Costa - Salvador - Bahia
Lívia Mattos - Salvador - Bahia
Maneiro Pau do Mestre Raimundo - Juazeiro - Ceará
Mestre Bigode e Antonio Contra Mestre - Juazeiro do Norte - Ceará
Mestre Cirilo do Maneiro Pau - Crato - Ceará
Percussionistas do Candeal - Salvador - Bahia
Palhaça Rubra - São Paulo
Trio de Sopros - São Luiz do Piratininga - São Paulo
Zé Matias do Cavaco - Juazeiro do Norte - Ceará

Direção: Betão Aguiar
Produção Musical: Betão Aguiar e Chico Salem
Direção de Fotografia e Câmera: Arthur Roessle e Carina Zaratin Direção de Produção: Mara Zeyn
Roteiro e Montagem: Haná Vaisman

21 de dezembro de 2011

Gilles Deleuze: bibliografia publicada no Brasil e outros textos e vídeos


    Gilles Deleuze (1925-1995), filósofo francês, vinculado aos denominados movimentos pós-estruturalistas, categorizações que o próprio Deleuze questionava pelo que trazem, ainda, da visão e luta pelo idêntico. Suas teorias acerca da diferença e da singularidade nos desafiam a pensar em temas como rizoma, ontologia da experiência, a teoria do que fazemos, a virtualidade e a atualidade.
          Deleuze, assim como Foucault, foi um dos estudiosos de Kant, mas tem em Bergson, Nietzsche e Espinosa, poderosas intersecções. Professor da Universidade de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou idéias como as de devir, acontecimentos, singularidades, enfim conceitos que nos impelem a transformar a nós mesmos, incitando-nos a produzir espaços de criação e de produção de acontecimentos-outros. Em sua vida, Deleuze fez tanto críticas ao marxismo como ao freudismo, ponderando-os como representantes de um 'burocratismo fundamental'. Acima de tudo, Deleuze nos convida a experimentar junto com ele suas idéias, sem nos tornarmos representantes de deleuzianismos, ou de um pensamento deleuziano. Muito mais experimentar com Deleuze, sem se filiar, fazer alianças sempre, intensas, porém não eternas ou mesmo de subserviência!     O tema da intensidade e das produções entre atual e virtual, tão caros a Deleuze, atravessam cotidianamente a área de EAD.
     
         Trata-se de uma filosofia do acontecimento, uma filosofia da multiplicidade, cujas bases rompem com a filosofia do sujeito, da consciência. Propõe lidar com a criação de conceitos e com a produção de acontecimentos que os atualizem no perpétuo jogo entre virtuais e atuais. Deleuze torce a concepção de desejo entrelaçado com as idéias de Nietzsche, de vontade de potência, inventando outros jeitos de ser, pensar e viver, intensamente atravessados por acontecimentos, intensidades nesses acontecimentos como experimentações. Trabalha esse acontecimento como uma processualidade da formação. A filosofia a que se propõe, que defende e buscou praticar é então constituída por três instâncias correlacionais: o plano de imanência que ela precisa traçar, os personagens filosóficos que ela precisa inventar e os conceitos que deve criar.     Portanto, uma filosofia é examinada, em sua concepção, o que nos invoca dimensões de praticidade, de experimentação, um alento pelo que ela produz e pelos efeitos que causa. Os conceitos filosóficos são válidos na medida em que sejam verdadeiros, mas uma verdade regulada por interesses e importância. Mais, pelo que os mesmos provocam na prática e pela prática. Como nos deixamos atravessar, afetar e atravessamos a produção desses conceitos, dessas idéias-experimentação.     Nesse ponto Deleuze nos instiga ao dizer, "não acredito naqueles que dizem 'faça isso'; acredito naqueles que dizem 'faça comigo', enfim". Também não se assumir como professor-profeta, que diz ao outro o que fazer e como fazer. Muito mais um professor militante, que, junto e a partir do de dentro, constrói coletivamente. É a esse Deleuze que nos referimos.
       
       Falar de Deleuze é exercer, de antemão, algumas escolhas, saber que se estará operando em dobras, resultantes, efeitos e promotoras de outras dobras. É falar de uma das múltiplas dobras que se intensificam em EAD, as dimensões de presença, desnaturalização da distância, desnaturalização do pensar, desnaturalização do experimentar.
           Ao conceber a vida como acontecimento que se produz como um devir, um fazer-se, Deleuze vem nos desafiar com uma lógica do sentido, não com categorias entrincheiradas, fazendo abstrações dos acontecimentos num a priori, já dado e já equacionado. Assim, a realidade proposta já está dada, de antemão. Os acontecimentos, e assim os buscamos ver e especialmente viver em EAD são singulares e, como tal, não previsíveis na lógica de uma matriz identitária, na qual tudo está definido. Não se imita, pois, ao criar, se está abrindo passagem para outros processos que não o idêntico, o identitário. São modos de subjetividade coletiva sempre se fazendo, acontecendo. Ao tratar de Deleuze, lidamos com uma ética do acontecimento, em cuja internalidade se busca não o tempo constituído pela continuidade e eternidade, mas o aberto pelo intempestivo da atualidade, sem categorias fixas, pelo qual o sujeito torna-se diferente do que é, sendo ele mesmo.                 Desafia-nos, nessa linha, entre outras, à idéia de que a educação é rizomática, segmentada, fragmentária, não está preocupada com a instauração de nenhuma falsa totalidade. Não interessa criar modelos, propor caminhos, impor soluções. Importa fazer rizoma, conexões, trabalhando o "entre dois", entre as coisas, no intermezzo. Sentidos para esses movimentos, passagens?          
            Assumir a potência do pensamento ao colocar-se o mais perto possível do infinito, pois um pensamento é tanto mais criativo quanto menor for seu abrigar.
       
          O método de Deleuze rejeita o recurso às mediações. É por isso que ele é essencialmente antidialético. A mediação é exemplarmente uma categoria. Ele nos propõe a produção imanente sem a mediação. Deleuze nos provoca com idéias de pensar e de criar conceitos, como dispositivos, ferramentas, algo que é inventado, criado, produzido, a partir das condições dadas e que opera no âmbito mesmo destas condições. O conceito é um dispositivo que faz pensar. Nossa prática, como intercessores, colocam-nos em condição de não se refugiar na "reflexão sobre", mas de operar, criar, experimentar, sem ser "agitando velhos conceitos estereotipados como esqueletos destinados a intimidar toda criação, (...) [não se contentando] em limpar, raspar os ossos" (Deleuze e Guattari, 1992, p. 109). Deixando emergir as multiplicidades, tais como conceitos e experimentações que se criam na frutífera parceria entre Deleuze e Guattari.
 
Obras
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 1999.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Rio de Janeiro: 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Kafka, por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
DELEUZE, Gilles. Empirismo e subjetividade. São Paulo: 34, 2001.
DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Lisboa: Veja, [1987].
DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é filosofia. Rio de Janeiro: 34, 1992.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Ano zero. Rostidade. Volume III. Rio de Janeiro: 34, 1996.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Introdução: Rizoma. Volume I, Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Postulados da Lingüística. Volume II. Rio de Janeiro: 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível. Volume IV. Rio de Janeiro: 34, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. Volume V. Rio de Janeiro: 34, 1995.
DELEUZE, Gilles & PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.

Textos:
O Abecedário de Gilles Deleuze - Gilles Deleuze
Anti-Oedipe et Mille plateaux - Gilles Deleuze
L'ile déserte et autres textes - Gilles Deleuze

Vídeos:

Fonte: Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional  - UFRGS

22 de outubro de 2011

Pensamento Nômade por Gilles Deleuze

e entrevista do filósofo concedida à André Flécheux e Mieke Taat [1973] (1) 

Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens que estão lendo Nietzsche, que estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absolutamente uma música nietzscheana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? Que se passa, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, e olhando de fora, tudo o que se pode explicar é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que a questão não seja comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel. Eu digo a mim mesmo: quem é hoje em dia o jovem nietzscheano? Será aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou então é aquele que, voluntária ou involuntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzscheanos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência? Isto também acontece. Pelo que conheço, um dos textos recentes mais belos, mais profundamente nietzscheanos, é o texto em que Richard Deshayes escreve: Viver, não é sobreviver, exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestação (2). Talvez os dois casos não se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir enunciados nietzscheanos no decorrer da experiência.

Sentimos todos os perigos que nos espreitam nessa questão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens conosco”...) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche...) E em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese abominável. Toma-se como aurora da nossa cultura moderna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vemos que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Estado”, não será o mesmo Estado); recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cuja meta é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não pára de se descodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente esse. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo no qual isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito...

Conhecemos os grandes instrumentos de codificação. As sociedades não variam tanto, não dispõem de tantos meios de codificação. Conhecemos três principais: a lei, o contrato e a instituição. Nós os reencontramos  muito bem, por exemplo, na relação que os homens mantêm ou mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor com o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente códigos, ou livros sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que passam pelo contrato, a relação contratual burguesa. É esta a base da literatura leiga e da relação de venda do livro: eu compro, você me dá o que ler – uma relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão presos. E há ainda outra espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que se apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda espécie de mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são tratados como textos sagrados... etc. É que todos os tipos de codificação estão tão presentes, subjacentes, que os encontramos uns nos outros. Seja um outro exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita sob três formas. Primeiramente, as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo – é a codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confinamento que será chamado no futuro a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão: “Bons os tempos em que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas piores”. Em seguida, houve uma espécie de golpe formidável, que foi o golpe da psicanálise: entendia-se que havia pessoas que escapavam à relação contratual burguesa tal como ela aparecia na medicina, e essas pessoas eram os loucos, porque estes não podiam ser partes contratantes, eram juridicamente “incapazes”. O golpe genial de Freud foi fazer passar sob a relação contratual uma parte dos loucos, no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a introduzir na psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade psicanalítica, a relação contratual burguesa que até então fora excluída dela. E, em seguida, existem ainda as tentativas mais recentes, cujas implicações políticas e às vezes ambições revolucionárias são evidentes, as tentativas ditas institucionais. Encontra-se aí o tríplice meio de codificação: ou bem será a lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação contratual será a instituição. E sobre essas codificações florescem nossas burocracias.

Diante da maneira pela qual nossas sociedades se descodificam, pela qual os códigos escapam por todos os lados, Nietzsche é aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto ainda não foi longe o bastante, vocês são apenas crianças (“A igualização do homem europeu é hoje o grande processo irreversível e deveríamos ainda acelerá-lo”). No nível daquilo que escreve e do que pensa, Nietzsche persegue uma tentativa de descodificação, não no sentido de uma descodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou futuros, mas de uma descodificação absoluta – fazer passar algo que não seja codificável, embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo no nível da mais simples escrita e da linguagem. Só vejo semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka faz com o alemão, em função da situação lingüística dos judeus de Praga: ele monta, em alemão, uma máquina de guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade, ele faz passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à Nietzsche, ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do alemão para montar uma máquina de guerra que vai passar algo que não é codificável em alemão. É isso o estilo como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal pensamento, que pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc., são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe devolverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A esse respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não, não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o doente, é preciso ir até ele, partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação? Mesmo assim, isso é seguramente mais complicado. O que nós sentimos é antes a necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra. Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma instauração de instituição. O único equivalente concebível seria talvez “estar no mesmo barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma espécie de jangada da Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em direção a riachos subterrâneos gelados, ou então em direção a rios tórridos, o Orenoco, o Amazonas, pessoas remam juntas, que não supõem que se amam, que se batem, que se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição. Uma deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de uma maneira muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de uma vaga impressão sobre a originalidade dos textos nietzscheanos. Um novo tipo de livro.

Quais são, pois, as características de um aforismo de Nietzsche, para dar esta impressão? Há uma que Maurice Blanchot evidenciou particularmente em A conversa infinita (3). É a relação com o fora. De fato, quando se abre ao acaso um texto de Nietzsche, é uma das primeiras vezes que não passamos mais por uma interioridade, seja a interioridade da alma ou da consciência, a interioridade da essência ou do conceito, ou seja, daquilo que sempre fez o princípio da filosofia. O que faz o estilo da filosofia é o fato de que a relação com o exterior é sempre mediatizada e dissolvida por uma interioridade, em uma interioridade. Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escrita, sobre uma relação imediata com o fora. O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro. Um aforismo também é enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro. Como no filme de Godard, pinta-se o quadro com a parede. Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase o contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o fora. Ora, conectar o pensamento ao fora é o que, ao pé da letra, os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política, mesmo quando falavam de passeio ou de ar puro. Não basta falar de ar puro, falar do exterior, para conectar o pensamento diretamente e imediatamente ao fora.

“...Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem consideração, sem pretexto, estão aí com a rapidez do raio, tão terríveis, tão repentinos, tão convincentes, tão outros para serem até mesmo um objeto de ódio...” É o célebre texto de Nietzsche sobre os fundadores de Estados, “esses artistas com olhar de bronze” (Genealogia da moral, II, 17). Ou será que é Kafka, o de A Muralha da China? “Impossível chegar a compreender como penetraram até a capital, que está todavia tão longe da fronteira. Entretanto, estão aí, e cada manhã parece aumentar seu número (...). Conversar com eles, impossível. Não sabem nossa língua (...) carnívoros também seus cavalos!” (4). Dizemos, então, que tais textos são atravessados por um movimento que vem do fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais como eles acontecem habitualmente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro fora. É isto, creio, o direito ao contra-senso para toda a obra de Nietzsche. Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, não tem significante como não tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um texto. Um aforismo é um estado de forças, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o diz muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a essa força. Desta maneira, não há problema de interpretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o texto de Nietzsche, procurar com qual força exterior atual ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia. A esse respeito, todos nós encontramos o problema levantado por certos textos de Nietzsche que têm uma ressonância fascista ou anti-semita... E já que se trata de Nietzsche hoje, devemos reconhecer que Nietzsche inspirou e inspira ainda muitos jovens fascistas. Houve um momento em que era importante mostrar que Nietzsche era utilizado, desviado, completamente deformado pelos fascistas. Isto foi feito na revista Acéphale, com Jean Wahl, Bataille, klossowski. Mas hoje talvez isto não seja mais um problema. Não é no nível dos textos que é preciso lutar. Não porque não se possa lutar nesse nível, mas porque essa luta não é mais útil. Trata-se antes de encontrar, de assinalar, de reunir as forças exteriores que dão a tal ou qual frase de Nietzsche seu sentido liberador, seu sentido de exterioridade. É no nível do método que se coloca a questão do caráter revolucionário de Nietzsche: é o método nietzscheano que faz do texto de Nietzsche, não mais alguma coisa a respeito da qual seria preciso se perguntar “é fascista, é burguês, é revolucionário em si?” – mas um campo de exterioridade em que se defrontam forças fascistas, burguesas e revolucionárias. E se colocarmos deste modo o problema, a resposta que está necessariamente em conformidade com o método é: encontre a força revolucionária (quem é além-do-homem?). Sempre um apelo a novas forças que vêm do exterior, e que atravessam e recortam o texto nietzscheano no quadro do aforismo. O contra-senso legítimo é isto: tratar o aforismo como um fenômeno à espera de novas forças que venham “subjugá-lo”, ou fazê-lo funcionar, ou então fazê-lo explodir.

O aforismo não é somente relação com o fora; tem, como segunda característica, a de ser uma relação com o intensivo. E é a mesma coisa. Sobre este ponto Klossowski e Lyotard disseram tudo. Esses estados vividos de que eu falava há pouco, para dizer que não se deve traduzi-los em representações ou em fantasmas, que não se deve fazê-los passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição, que não se deve converter em moeda, que é preciso, ao contrário, fazer deles fluxos que nos levam cada vez mais longe, mais para o exterior, são exatamente as intensidades. O estado vivido não é algo subjetivo, ou não o é necessariamente. Não é algo individual. É o fluxo, e o corte do fluxo, já que cada intensidade está necessariamente em relação com uma outra de tal modo que alguma coisa passe. É o que está sob os códigos, o que lhes escapa, e o que os códigos querem traduzir, converter, transformar em moeda. Mas Nietzsche, com sua escrita de intensidades, nos diz: não troquem as intensidades por representações. A intensidade não remete nem a significados que seriam como a representação de coisas, nem a significantes que seriam como representações de palavras. Então, qual é a sua consistência ao mesmo tempo como agente e como objeto de descodificação? É o que há de mais misterioso em Nietzsche. A intensidade tem algo que ver com os nomes próprios, e estes não são nem representações de coisas (ou pessoas), nem representações de palavras. Coletivos ou individuais, os pré-socráticos, os romanos, os judeus, o Cristo, o Anticristo, Júlio César, Bórgia, Zaratustra, todos esses nomes próprios que passam e retornam nos textos de Nietzsche, não são nem significantes nem significados, mas designações de intensidade, sobre um corpo que pode ser o corpo da Terra, o corpo do livro, mas também o corpo sofredor de Nietzsche: todos os nomes da história, sou eu... Há uma espécie de nomadismo, de deslocamento perpétuo de intensidades designadas por nomes próprios, e que penetram umas nas outras ao mesmo tempo em que são vividas sobre um corpo pleno. A intensidade só pode ser vivida em relação com sua inscrição móvel sobre um corpo, e com a exterioridade movente de um nome próprio, e é por isso que o nome próprio é sempre uma máscara, máscara de um operador.

O terceiro ponto é a relação do aforismo com o humor e a ironia. Aqueles que lêem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir freqüentemente, e sem dar gargalhadas às vezes, é como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da comunicação, todo o trágico da interioridade. Mesmo Max Brod, todavia, conta como os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E também Beckett é difícil ler sem rir, sem passar de um momento de alegria a um outro momento de alegria. O riso, e não o significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros, em vez de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se chamar isso de “cômico do além-do-humano”, ou então “palhaço de Deus”, há sempre uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis. Todo grande livro opera já a transmutação e faz a saúde de amanhã. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos. Se você colocar o pensamento em relação com o fora, nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensamento ao ar livre. Acontece com freqüência a Nietzsche encontrar-se diante de algo que considera repugnante, ignóbil, de causar vômito. E isto o faz rir, ele faria mais ainda se fosse possível. Ele diz: mais um esforço, ainda não está nojento o bastante, ou, então, é formidável como isto é nojento, é uma maravilha, uma obra-prima, uma flor venenosa, enfim, “o homem começa a tornar-se interessante”. Por exemplo, é assim que Nietzsche considera e trata aquilo que chama de a má consciência. Então há sempre comentadores hegelianos, comentadores da interioridade, que não possuem o senso do riso. Eles dizem: vejam, Nietzsche leva a sério a má consciência, faz dela um momento do devir-espírito da espiritualidade. A respeito daquilo que Nietzsche faz da espiritualidade, eles passam por cima porque sentem o perigo. Portanto, vê-se que, se Nietzsche dá direito a contra-sensos legítimos, todos aqueles que se explicam pelo espírito do sério, pelo espírito do pesado, pelo macaco de Zaratustra, ou seja, pelo culto da interioridade. O riso em Nietzsche remete sempre ao movimento exterior dos humores e das ironias, e este movimento é o das intensidades, das quantidades intensivas, tal como Klossowski e Lyotard o viram: a maneira pela qual há um jogo de intensidades baixas e intensidades elevadas, umas nas outras, a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente. É este jogo de escalas intensivas que comanda as subidas da ironia e as quedas do humor em Nietzsche, e que se desenvolve como consistência ou qualidade do vivido em sua relação com o exterior. Um aforismo é uma matéria pura de riso e de alegria. Se não se encontrou aquilo que faz rir num aforismo, qual distribuição de humores e de ironias, e, do mesmo modo, qual repartição de intensidades, não se encontrou nada.

Existe ainda um último ponto. Voltemos ao grande texto de A Genealogia, sobre o Estado e os fundadores de impérios: “Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão”...etc. (5). Pode-se reconhecer aí os homens da produção dita asiática. Sobre a base de comunidades rurais primitivas, o déspota constrói sua máquina imperial que sobrecodifica o todo, com uma burocracia, uma administração que organiza os grandes trabalhos e se apropria do trabalho excedente (“onde eles aparecem, em pouco tempo há algo de novo, uma engrenagem soberana, que é viva, em que partes e funções são delimitadas e determinadas em relação ao conjunto”...). Mas pode-se perguntar também se este texto não reúne duas forças que se distinguem sob outros aspectos – e que Kafka, por sua vez, distinguia e mesmo opunha em A Muralha da China. Com efeito, quando se investiga como as comunidades primitivas segmentárias deram lugar a outras formações de soberania, questão que Nietzsche coloca na segunda dissertação de A Genealogia, vê-se que se produzem dois fenômenos estritamente correlatos, mas absolutamente diferentes. É verdade que, no centro, as comunidades rurais estão presas e fixadas à máquina burocrática do déspota com seus escribas, seus padres, seus funcionários; mas, na periferia, as comunidades entram noutra espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se descodificam em vez de se deixarem sobrecodificar. Grupos inteiros que partem, que nomadizam: os arqueólogos nos habituaram a pensar este nomadismo não como um estado primeiro, mas como uma aventura que sobrevém a grupos sedentários, o apelo do fora, o movimento. O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca. E, todavia, eles são de tal modo correlatos ou interpenetrados que o problema do déspota será o de integrar, de interiorizar a máquina de guerra nômade, e o problema do nômade será o de inventar uma administração do império conquistado. Eles não param de se opor a ponto mesmo de se confundirem.

O discurso filosófico nasceu da unidade imperial através de muitos avatares, esses mesmos avatares que nos conduzem das formações imperiais à cidade grega. Mesmo através da cidade grega, o discurso filosófico permanece numa relação essencial com o déspota ou com a sombra do déspota, com o imperialismo, com a administração das coisas e das pessoas (encontraríamos todos os tipos de provas disto no livro de Léo Strauss e de Kojève sobre A Tirania (6)). O discurso filosófico sempre esteve numa relação essencial com a lei, a instituição, o contrato, que constituem o problema do Soberano e que atravessam a história sedentária das formações despóticas às democracias. O “significante” é verdadeiramente o último avatar filosófico do déspota. Ora, se Nietzsche não pertence à filosofia, é talvez porque ele é o primeiro a conceber um outro tipo de discurso como uma contrafilosofia. Ou seja, um discurso antes de tudo nômade, cujos enunciados não seriam produzidos por uma máquina racional administrativa que tem os filósofos como burocratas da razão pura, mas por uma máquina de guerra móvel. É talvez neste sentido que Nietzsche anuncia que uma nova política começa com ele (o que Klossowski denomina o complô contra sua própria classe). Sabe-se bem que em nossos regimes os nômades são infelizes: não se recua diante de nenhum meio para fixá-los, eles têm dificuldade para viver. E Nietzsche viveu como um desses nômades reduzidos à sua própria sombra, indo de pensão em pensão. Mas, de outro lado, o nômade não é forçosamente alguém que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes; ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos. Sabe-se bem que o problema revolucionário, hoje, é o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na organização despótica e burocrática do partido ou do aparelho de Estado: uma máquina de guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o Fora, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Eis talvez o que é mais profundo em Nietzsche, a medida de sua ruptura com a filosofia, tal como ela aparece no aforismo: ter feito do pensamento uma máquina de guerra, ter feito do pensamento uma potência nômade. E mesmo se a viagem for imóvel, mesmo se for feita num mesmo lugar, imperceptível, inesperada, subterrânea, devemos perguntar quais são nossos nômades de hoje, que são realmente os nossos nietzscheanos?

Discussão


André Flécheux. – O que eu gostaria de saber é como [Deleuze] pensa fazer a economia da desconstrução, ou seja, como ele pensa contentar-se com uma leitura nomádica de cada aforismo, a partir da empiricidade, e como que de fora, o que me parece, de um ponto de vista heideggeriano, extremamente suspeito. Eu me pergunto se o problema da “já aí” que constitui a língua, a organização estabelecida, o que você chama de “o déspota”, permite compreender a escrita de Nietzsche como uma espécie de leitura errática que ela mesma dependeria de uma escrita errática, enquanto Nietzsche aplica a si mesmo o que ele denomina uma autocrítica e que as edições atuais o revelam como um excepcional trabalhador do estilo, para o qual, conseqüentemente, cada aforismo não é um sistema fechado, mas está implícito em toda uma estrutura de remissões. Este estatuto, em seu pensamento de um fora sem desconstrução, talvez se ligue ao da  energética em Lyotard.

Segunda questão, que se articula ainda aqui com a primeira: numa época em que a organização estatal, capitalista, enfim, chamem-na como quiserem, lança um desafio que é finalmente aquilo que Heidegger chama da inspeção pela técnica, o senhor pensa sem rir que o nomadismo, tal como o senhor o descreve, constitui uma resposta séria?

Gilles Deleuze. – Se compreendo bem, o senhor diz que há motivos para se suspeitar de mim do ponto de vista heideggeriano. Alegro-me com isto. Quanto ao método de desconstrução dos textos, vejo bem o que ele é, admiro-o muito, mas ele nada tem que ver com o meu. Não me apresento, absolutamente, como um comentador de textos. Um texto, para mim, é apenas uma pequena engrenagem numa prática extratextual. Não se trata de comentar o texto por meio de um método de desconstrução, ou de um método de prática textual, ou de outros métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que prolonga o texto. O senhor pergunta se acredito na resposta dos nômades. Sim, eu creio. Genghis Khan, é alguma coisa. Ele vai ressurgir do passado? Não sei, em todo caso, sob outra forma. Do mesmo modo que o déspota interioriza a máquina de guerra nômade, a sociedade capitalista não pára de interiorizar uma máquina de guerra revolucionária. Não é na periferia (pois não há mais periferia) que se formam novos nômades. Eu perguntava de quais nômades, se necessário imóveis e no mesmo lugar, nossa sociedade é capaz.

André Flécheux: -- Sim, mas o senhor excluiu na sua exposição o que chamava de interioridade...

Gilles Deleuze: -- O senhor joga com a palavra “interioridade”...

André Flécheux: -- A viagem do dentro?
Gilles Deleuze: -- Eu disse “viagem imóvel”. Não é uma viagem do dentro, é uma viagem sobre o corpo, se for o caso, sobre corpos coletivos.

Mieke Taat:  -- Gilles Deleuze, se eu o compreendi bem, o senhor opõe o riso, o humor e a ironia à má consciência. O senhor está de acordo que o riso de Kafka, de Beckett, de Nietzsche não exclui chorar por esses escritores, desde que as lágrimas não sejam as que jorram de uma fonte interior ou interiorizada, mas simplesmente de uma produção de fluxos na superfície do corpo?

Gilles Deleuze: -- Certamente, tem razão.

Mieke Taat: -- Ainda uma outra questão. Quando o senhor opõe o humor e a ironia à má consciência, não os distingue mais um do outro, como fazia em Lógica do sentido, onde um era de superfície e outro de profundidade. O senhor não teme que a ironia possa estar perigosamente próxima da má consciência?

Gilles Deleuze: -- Eu mudei. A oposição superfície-profundidade não me preocupa mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre o corpo pleno, um corpo sem órgãos, e os fluxos que fluem.

Mieke Taat: -- Isto não excluiria mais o ressentimento, neste caso?

Gilles Deleuze: -- Oh, sim!
...
Tradução de
Milton Nascimento (7) e Luiz B. Orlandi

NOTAS
(1) Em Nietzsche aujourd’hui? T.1: intensités, Paris, UGE, 10/18, 1973, pp. 159-174. A respeito das discussões, foram mantidas apenas as questões apresentadas a Deleuze e transcritas nas pp. 185-187 e 189-190 da referida publicação. O colóquio “Nietzsche hoje?” desenrolou-se em julho de 1972 no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle.
(2) Estudante de Liceu, de extrema-esquerda, ferido pela polícia durante manifestação em 1971.
(3) M. Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 227 e seguintes.
(4) F. Kafka, La Muraille de Chine et autres récits, Paris, Gallimard, 1950, col. “Du Monde entier”, pp. 95-96.
(5) La Généalogie de la morale, II, § 17.
(6) L. Strauss, De la tyrannie, seguido de Tyrannie et sagesse, de Kojève, Paris, Gallimard, reedição de 1997.
(7) Parte da tradução brasileira originalmente publicada em Nietzsche hoje? – Colóquio de Cerisy, SP, Brasiliense, 1985, pp. 56-76.

21 de outubro de 2011

Spinoza II por Gilles Deleuze


Aula ministrada à Vincennes no dia 25/11/1980
  
É muito curioso verificar a que ponto a filosofia, até o fim do século XVII, fala-nos afinal, o tempo todo, de Deus. E no fim das contas, Spinoza, judeu excomungado, não é o último a nos falar de Deus. O primeiro livro da Ética, sua grande obra, chama-se "De Deus". E em todos, Descartes, Malebranche, Leibniz, tem-se a impressão de que a fronteira entre a filosofia e a teologia é extremamente vaga. Por que a filosofia comprometeu-se a tal ponto com Deus? Foi assim até o golpe revolucionário dos filósofos do século XVIII. Trata-se de um comprometimento ou de alguma coisa um tanto mais pura? Poderíamos dizer que a filosofia, até o fim do século XVII, deve sempre atender às exigências da Igreja, e que ela é portanto forçada a dar conta de muitos temas religiosos. Porém sentimos muito bem que seria demasiadamente fácil; poderíamos dizer igualmente que, até essa época, sua sorte está um tanto ligada a um sentimento religioso.

Eu vou retomar uma analogia com a pintura porque é verdade que a pintura está repleta de imagens de Deus. Minha questão é: basta dizer que se trata de um constrangimento inevitável nessa época? Há duas respostas possíveis. A primeira é sim, trata-se de um constrangimento inevitável dessa época que remete às condições da arte nessa época. Ou então dizer, um pouco mais positivamente, que é porque existe um sentimento religioso ao qual o pintor, e sobretudo a pintura, não escapam. Tampouco escapam dele a filosofia e o filósofo. Isso basta? Não seria possível uma outra hipótese, a saber, que nessa época a pintura tem tanta necessidade de Deus justamente porque o divino, longe de ser um constrangimento para o pintor, é o lugar de sua emancipação máxima? Em outras palavras, com Deus ele pode fazer seja lá o que for, ele pode fazer o que não poderia fazer com os humanos, com as criaturas. Assim, Deus é investido diretamente pela pintura, por uma espécie de fluxo de pintura, e, nesse nível, a pintura vai encontrar por sua conta uma espécie de liberdade que ela não teria encontrado de outra maneira. No limite, não existe oposição entre o pintor mais piedoso e esse mesmo pintor enquanto faz pintura e que é, de certa maneira, o mais ímpio, pois a maneira pela qual a pintura investe o divino é puramente pictural, onde a pintura encontra, precisamente, as condições de sua emancipação radical.

Dou três exemplos: El Greco... Essa criação, ele só poderia obtê-la a partir das figuras do cristianismo. Então é verdade que, num certo nível, havia constrangimentos se exercendo sobre eles, e num outro nível, o artista é aquele que - Bergson dizia isso do vivo, ele dizia que o vivo converte os obstáculos em meios, essa seria uma boa definição do artista. É verdade que há constrangimentos da Igreja que se exercem sobre o pintor, mas há transformação dos constrangimentos em meios de criação. Eles se servem de Deus para obter uma liberação das formas, para levar as formas até um ponto em que as formas já não têm nada a ver com uma ilustração. As formas se desencadeiam. Elas se lançam numa espécie de Sabá, uma dança muito pura, as linhas e as cores perdem toda necessidade de serem verossímeis, de serem exatas, de se assemelharem a qualquer coisa. É a grande liberação das linhas e das cores que se faz em favor dessa aparência: a subordinação da pintura às exigências do cristianismo.

Outro exemplo: uma criação do mundo... O Antigo Testamento lhes serve para uma espécie de liberação dos movimentos, das formas, das linhas e das cores. De tal maneira que, em certo sentido, o ateísmo jamais foi exterior à religião: o ateísmo é a potência-artista que trabalha a religião. Com Deus, tudo é permitido. Eu tenho o vivo sentimento de que com a filosofia foi exatamente a mesma coisa, e que se os filósofos nos falaram tanto sobre Deus - e eles podiam muito bem ser cristãos ou crentes -, não foi sem um intenso gracejo. Não era um gracejo de incredulidade, mas uma alegria do trabalho que eles estavam prestes a fazer.

Assim como, eu dizia, Deus e Cristo foram para a pintura uma extraordinária ocasião para liberar as linhas, as cores e os movimentos dos constrangimentos da semelhança, também para a filosofia Deus e o tema de Deus foram uma ocasião insubstituível para liberar aquilo que é o objeto de criação em filosofia - ou seja, os conceitos - dos constrangimentos que a simples representação das coisas lhes teria imposto... É no nível de Deus que o conceito é liberado, porque ele já não tem a tarefa de representar alguma coisa; ele torna-se a partir desse momento o signo de uma presença. Falando por analogia, ele assume linhas, cores e movimentos que ele não teria jamais sem esse desvio por Deus. É verdade que os filósofos sofrem os constrangimentos da teologia, mas em tais condições que, a partir desse constrangimento, eles irão produzir um fantástico meio de criação, a saber, eles vão arrancar dele uma liberação do conceito da qual ninguém poderá duvidar. Salvo no caso em que um filósofo vá longe demais ou com demasiada força. Será esse, talvez, o caso de Spinoza? Desde o início, Spinoza se colocou em condições segundo as quais o que ele nos dizia já não tinha mais nada a representar. Eis que aquilo que Spinoza irá chamar de Deus, no primeiro livro da Ética, será a coisa mais estranha do mundo: será o conceito capaz de reunir o conjunto de todas as possibilidades... Por meio do conceito filosófico de Deus realiza-se - e não podia realizar-se senão nesse nível - a mais estranha criação da filosofia como sistema de conceitos.

O que os pintores e os filósofos fizeram Deus padecer representa, seja a pintura como paixão, seja a filosofia como paixão. Os pintores fizeram o corpo de Cristo padecer uma nova paixão: eles o condensam, o contraem... A perspectiva é liberada de todo constrangimento de representar seja lá o que for, e para os filósofos é a mesma coisa. Eu tomo Leibniz como exemplo. Leibniz recomeça a criação do mundo. Ele retoma o problema clássico: saber qual é o papel do entendimento de Deus e da vontade de Deus na criação do mundo.

Suponhamos que Leibniz nos conte isto: Deus possui um entendimento, certamente um entendimento infinito. Ele não se assemelha ao nosso. A própria palavra "entendimento" seria equívoca. Ela não teria um único sentido, uma vez que o entendimento infinito não é em absoluto idêntico ao nosso próprio entendimento, que é um entendimento finito. No entendimento infinito, o que é que se passa? Antes que Deus crie o mundo, há por certo um entendimento, porém não há nada, não há mundo. Não, diz Leibniz, mas há os possíveis. Há possíveis no entendimento de Deus, e todos esses possíveis tendem à existência. Eis que a essência é, para Leibniz, uma tendência à existência, uma possibilidade que tende à existência. Todos esses possíveis pesam de acordo com sua quantidade de perfeição. O entendimento de Deus torna-se como que uma espécie de invólucro onde todos os possíveis descem e se chocam. Todos querem passar à existência. Mas Leibniz nos diz que isso não é possível, todos eles não podem passar à existência. Por quê? Porque cada um por sua conta poderia passar à existência, mas eles em sua totalidade não formam combinações compatíveis. Há incompatibilidades do ponto de vista da existência. Determinado possível não pode ser compossível com outro possível.

Eis a segunda etapa: ele está prestes a criar uma relação lógica de um tipo completamente novo: não há somente as possibilidades, há também os problemas de compossibilidade. Um possível é compossível com tal outro possível? Então qual é o conjunto de possíveis que passará à existência? Só passará à existência o conjunto de possíveis que, por sua conta, possuir a maior quantidade de perfeição. Os outros serão recalcados. É a vontade de Deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis. É um extraordinário descenso para a criação do mundo, e, em favor desse descenso, Leibniz cria todos os tipos de conceitos. Nem mesmo se pode dizer que esses conceitos sejam representativos, pois eles precedem as coisas a representar. E Leibniz lança sua célebre metáfora: Deus cria o mundo como quem joga xadrez, trata-se de escolher a melhor combinação. E o cálculo do xadrez irá dominar a visão leibniziana do entendimento divino. É uma criação de conceitos extraordinária, que encontra no tema de Deus a condição mesma de sua liberdade e de sua liberação. Ainda uma vez, do mesmo modo que o pintor servia-se de Deus para que as linhas, as cores e o movimento não fossem constrangidos a representar algo prévio, a reproduzir algo pronto [donner tout fait]. Não se trata de perguntar o que um conceito representa. É preciso perguntar qual é o seu lugar num conjunto de outros conceitos. Na maior parte dos grandes filósofos, os conceitos que eles criam são inseparáveis, e são tomados em verdadeiras seqüências. Se não compreendemos a seqüência da qual faz parte um conceito, não poderemos compreender o conceito. Eu emprego o termo seqüência porque faço uma espécie de aproximação com a pintura. Se de fato a unidade constituinte do cinema é a seqüência, acredito que, guardadas as proporções [toutes choses égales], poderia se dizer o mesmo do conceito e da filosofia.

No nível do problema do Ser e do Um, é verdade que os filósofos vão restabelecer uma seqüência em sua tentativa de criação conceitual sobre as relações entre o Ser e o Um. A meu ver, quem faz as primeiras grandes seqüências na filosofia, no nível dos conceitos, é Platão, na segunda parte do Parmênides. Há, com efeito, duas seqüências. A segunda parte do Parmênides é feita de sete hipóteses. Essas sete hipóteses se dividem em dois grupos: primeiramente três hipóteses, depois outras quatro. São duas seqüências. Primeiro tempo: suponhamos que o Um é superior ao Ser, que o Um está acima do Ser. Segundo tempo: o Um é igual ao Ser. Terceiro tempo: o Um é inferior ao Ser, e deriva do Ser. Jamais digam que um filósofo se contradiz; ao invés disso, perguntem: "Tal página, em que seqüência colocá-la, em que nível da seqüência?" E é evidente que o Um do qual Platão nos fala, segundo esteja situado no nível da primeira, da segunda ou da terceira hipótese, não é o mesmo.

Plotino, um discípulo de Platão, fala-nos num certo nível do Um como origem radical do Ser. Nesse caso, o Ser sai do Um. O Um faz Ser, portanto ele não é, ele é superior ao Ser. Essa será a linguagem da pura emanação: do Um emana o Ser. Ou seja, o Um não sai de si para produzir o Ser, pois se ele saísse de si ele se tornaria Dois; mas o Ser sai do Um. Essa é a fórmula mesma da causa emanante. Porém quando nos instalamos no nível do Ser, o mesmo Plotino irá nos falar em termos esplêndidos e em termos líricos do Ser que contém todos os seres, o Ser que compreende todos os seres. E ele emite toda uma série de fórmulas que terão uma grande importância para toda a filosofia do Renascimento. Ele dirá que o Ser complica todos os seres. É uma fórmula admirável. Porque é que o Ser complica todos os seres? Porque cada ser explica o Ser. Existe aí um dobrete: complicar, explicar. Cada coisa explica o Ser, mas o Ser complica todas as coisas, ou seja, compreende-as em si. Então essas páginas de Plotino já não se referem à emanação. Vocês se dirão que a seqüência evoluiu: ele está prestes a nos falar de uma causa imanente. E, com efeito, o Ser se comporta como uma causa imanente em relação aos seres, mas ao mesmo tempo o Um se comporta em relação ao Ser como uma causa emanante. E se descermos um pouco mais, veremos que há em Plotino, que entretanto não é cristão, alguma coisa que assemelha-se muito a uma causa criativa.

De certa maneira, se vocês não levarem em conta as seqüências, não saberão mais ao certo de que ele está falando. A menos que existam filósofos que destroem as seqüências porque querem fazer outra coisa. Uma seqüência conceitual seria o equivalente das nuanças em pintura. Um conceito muda de tom, ou no limite muda de timbre. Haveria aí como que timbres, tonalidades. Até Spinoza, a filosofia caminhou essencialmente por seqüências. E, nessa via, as nuanças que concernem à causalidade eram muito importantes. A causalidade original, a causa primeira, ela é emanante, imanente, criativa ou ainda alguma outra coisa? Assim, a causa imanente estava presente na filosofia o tempo todo, mas sempre como um tema que não ia até as últimas conseqüências. Por quê? Porque era sem dúvida o tema mais perigoso. Deus pode muito bem ser tratado como causa emanante, isso não traz nenhum problema, porque haverá ainda uma distinção entre a causa e o efeito. Mas tudo se torna muito mais difícil se Ele for tratado como causa imanente, de tal modo que não se saiba muito bem como distinguir a causa e o efeito, ou seja, Deus e a criatura. A imanência era antes de mais nada o perigo. Assim, a idéia de uma causa imanente aparece constantemente na história da filosofia, porém refreada, mantida num determinado nível da seqüência, carecendo de valor e devendo ser corrigida nos outros momentos da seqüência, pois a acusação de imanentismo foi, em toda a história das heresias, a acusação fundamental: "Você confunde Deus e a criatura". Essa é a acusação para a qual não há perdão. Portanto a causa imanente estava constantemente em jogo, mas não chegava a receber um estatuto. Ela só tinha um pequeno lugar na seqüência dos conceitos.

Chega Spinoza. Ele havia sido precedido sem dúvida por todos aqueles que tiveram mais ou menos audácia no que concerne à causa imanente, isto é, essa causa bizarra que não apenas permanece em si para produzir, mas cujos produtos permanecem nela. Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Na Ética, creio que a Ética está construída sobre uma primeira grande proposição que se poderia chamar a proposição especulativa ou teórica. A proposição especulativa de Spinoza é: só existe uma única substância absolutamente infinita, ou seja, que possui todos os atributos, e aquilo que se chama de criaturas não são criaturas, mas os modos ou maneiras de ser dessa substância. Portanto, uma única substância possuindo todos os atributos e cujos produtos são os modos, as maneiras de ser. Desde então, se eles são as maneiras de ser da substância que possui todos os atributos, esses modos existem nos atributos da substância. Eles estão compreendidos nos atributos.

Todas as conseqüências aparecem imediatamente. Não há nenhuma hierarquia nos atributos de Deus, da substância. Por quê? Se a substância possui igualmente todos os atributos, não existe hierarquia entre os atributos, um não vale mais do que o outro. Em outros termos, se o pensamento é um atributo de Deus e se a extensão é um atributo de Deus ou da substância, não haverá nenhuma hierarquia entre o pensamento e a extensão. Todos os atributos terão o mesmo valor a partir do momento em que eles são atributos da substância. Ainda permanecemos no abstrato. É a figura especulativa da imanência.

Tiro daí algumas conclusões. É isso que Spinoza irá chamar de Deus. Ele chama isso de Deus porque se trata do absolutamente infinito. O que isso representa? É muito curioso. Pode-se viver dessa maneira? Tiro daí duas conseqüências. Primeira conseqüência: ele é quem ousa fazer o que muitos tiveram o desejo de fazer, a saber, liberar completamente a causa imanente de qualquer subordinação a outros processos de causalidade. Só existe uma causa, a causa imanente. E isso tem uma influência sobre a prática. Spinoza não intitula seu livro "Ontologia", ele é demasiadamente sagaz para isso, ele o intitula "Ética". E essa é uma maneira de dizer que, qualquer que seja a importância de minhas proposições especulativas, vocês só poderão julgá-las no nível da ética que elas envolvem ou implicam. Ele libera completamente a causa imanente com a qual, até aí, haviam lidado os judeus, os cristãos, os heréticos, porém no interior de seqüências muito precisas de conceitos. Spinoza arranca-a de todas as seqüências e faz uma violenta apropriação [coup de force] no nível dos conceitos. Já não há mais seqüência. Posto que ele extraiu a causalidade imanente da seqüência das grandes causas, das causas primeiras, posto que ele aplanou tudo sobre uma substância absolutamente infinita que possui todos os atributos e compreende todas as coisas como seus modos, ele substituiu a seqüência por um verdadeiro plano de imanência. É uma revolução conceitual extraordinária: em Spinoza tudo se passa como que sobre um plano fixo. Um extraordinário plano fixo que não será de modo algum um plano de imobilidade, pois todas as coisas irão se mover - e para Spinoza só o movimento das coisas conta - sobre esse plano fixo. Ele inventa um plano fixo. A proposição especulativa de Spinoza é essa: arrancar o conceito do estado de variações de seqüências e projetar tudo sobre um plano fixo que é o da imanência. Isso implica uma técnica extraordinária.

Viver num plano fixo é também um certo modo de vida. Eu não vivo mais segundo seqüências variáveis. Então, viver sobre um plano fixo, o que seria isso? É Spinoza polindo suas lentes, ele que tudo abandonou, sua herança, sua religião, todo êxito social. Ele não faz nada e antes mesmo que tenha escrito seja lá o que for, é injuriado, denunciado. Spinoza é o ateu, o abominável. Ele praticamente não pode publicar. Ele escreve cartas. Ele não queria ser professor. No "Tratado Político" ele concebe o magistério como uma atividade não remunerada, e mais ainda, diz que seria preciso pagar para ensinar. Os professores ensinariam arriscando sua fortuna e sua reputação. Um verdadeiro professor público seria isso. Spinoza relaciona-se com um grande grupo de estudantes, ele envia-lhes a Ética à medida que a escreve, e eles explicam os textos de Spinoza uns para os outros, e escrevem a Spinoza, que responde. São pessoas muito inteligentes. Essa correspondência é essencial. Ele tem sua pequena rede. Denunciado em toda parte, ele se preserva graças à proteção dos irmãos De Witt.

É como se ele inventasse o plano fixo no nível dos conceitos. A meu ver, é a mais fundamental tentativa de dar um estatuto à univocidade do Ser, um Ser absolutamente unívoco. O Ser unívoco é precisamente o que Spinoza define como sendo a substância tendo todos os atributos iguais, tendo todas as coisas como modos. A substância absolutamente infinita é o Ser enquanto Ser, os atributos todos iguais uns aos outros são a essência do Ser - e aqui temos essa espécie de plano sobre o qual tudo é aplanado e onde tudo se inscreve.

Nenhum filósofo foi tratado por seus leitores como Spinoza o foi, graças a Deus. Spinoza foi um desses autores essenciais, por exemplo, para o romantismo alemão. Ora, mesmo esses autores tão cultos nos dizem algo muito curioso. Eles dizem que a Ética é a obra que nos apresenta a totalidade mais sistemática, é o sistema levado ao absoluto, é o Ser unívoco, o Ser que não se diz a não ser em um único sentido. É a ponta extrema do sistema. É a totalidade mais absoluta. E também dizem, ao mesmo tempo, que quando lemos a Ética temos sempre o sentimento de que não chegamos a compreender o conjunto. O conjunto nos escapa. Não somos suficientemente rápidos para reter tudo conjuntamente. Há uma página muito bela de Goethe em que ele diz que releu dez vezes a mesma coisa e que ele nunca compreende o conjunto; cada vez que eu o leio eu compreendo uma outra parte. Spinoza é o filósofo cujo aparelho conceitual está entre os mais sistemáticos de toda a filosofia. E, no entanto, nós leitores temos sempre a impressão de que o conjunto nos escapa e que estamos reduzidos a sermos tomados por esta ou aquela parte. Somos verdadeiramente tomados por esta ou aquela parte. Num outro nível, ele é o filósofo que leva mais longe o sistema de conceitos, e portanto exige uma cultura filosófica muito grande. O início da Ética começa com definições: da substância, da essência, etc. Isso remete a toda a escolástica e ao mesmo tempo não há filósofo que possa, como ele, ser lido sem que se saiba absolutamente nada. E é preciso manter ambos. Vamos, pois, compreender esse mistério. (Victor) Delbos diz que Spinoza é um grande vento que nos arrasta. Isso combina bem com a minha história do plano fixo. Poucos filósofos tiveram esse mérito de aceder ao estatuto de um grande vento calmo. E os miseráveis, os pobres tipos que lêem Spinoza, o comparam a rajadas que nos assaltam. Como conciliar a existência de uma leitura analfabeta e de uma compreensão analfabeta de Spinoza com esse outro fato, o de que Spinoza seja, repito, um dos filósofos que constituíram o aparelho conceitual mais minucioso do mundo? Existe aqui um êxito no nível da linguagem.

A Ética é um livro que Spinoza considera como terminado. Ele não publicou o seu livro porque sabia que, se o publicasse, seria preso. Todo mundo lhe cai em cima, ele já não tem um protetor (1). As coisas vão muito mal para ele. Ele renunciou à publicação, mas em certo sentido isso não tinha importância, pois seus alunos já possuíam o texto. Leibniz conhecia o texto.

De que é feito esse texto? Ele começa pela Ética demonstrada à maneira geométrica. É o emprego do método geométrico. Muitos autores já empregaram esse método, mas geralmente em uma seqüência na qual uma proposição filosófica é demonstrada à maneira de uma proposição geométrica, de um teorema. Spinoza arranca-o do estado de um momento numa seqüência e fará dele o método completo de exposição da Ética. De modo que a Ética se divide em cinco livros. Ela começa com definições, axiomas, proposições ou teoremas, demonstrações do teorema, corolário do teorema, etc. É isso o grande vento, formando uma espécie de camada [nappe] contínua. A exposição geométrica já não é em absoluto a expressão de um momento numa seqüência, ele pode livrar-se dela completamente porque o método geométrico será o processo que consiste em preencher o plano fixo da substância absolutamente infinita. Portanto, um grande vento calmo. E em tudo isso há um encadeamento contínuo de conceitos, cada teorema remete a outros teoremas, cada demonstração remete a outras demonstrações.

(1) Os irmãos De Witt foram assassinados em 1672. (N. do T.)

Tradução: Francisco Traverso Fuchs

19 de outubro de 2011

Spinoza por Gilles Deleuze

Entretien avec Pascal Auger : autour de Deleuze et du cinéma | Philosophie en France | Scoop.itAula ministrada à Vincennes no dia 24/01/1978
Hoje estamos fazendo uma pausa no nosso trabalho sobre a variação contínua, fazendo um retorno provisório para uma sessão de história da filosofia, sobre um ponto muito preciso. É como um corte, a pedido de alguns de vocês. Esse ponto muito preciso diz respeito ao seguinte: o que é uma idéia e o que é um afeto em Spinoza? Idéia e afeto em Spinoza. No decorrer de março, a pedido de alguns de vocês, também faremos um corte sobre o problema da síntese e o problema do tempo em Kant.
Voltar à história produz em mim um efeito curioso. Eu quase gostaria que vocês tomassem esse pedaço de história da filosofia como não mais do que uma história. Afinal, um filósofo não é somente alguém que inventa noções, ele também inventa, talvez, maneiras de perceber. Vou proceder quase que por enumeração. Antes de mais nada farei algumas observações terminológicas. Suponho que a sala está relativamente misturada. Creio que, entre todos os filósofos dos quais a história da filosofia nos fala, Spinoza está numa situação muito excepcional: a maneira pela qual ele toca aqueles que entram em seus livros não tem equivalente. Eu conto uma história, pouco importa que vocês o tenham lido ou não. Começo com advertências terminológicas. No livro principal de Spinoza, que se chama “Ética” e está escrito em latim, encontramos duas palavras: “affectio” e “affectus”. Alguns tradutores, muito estranhamente, traduzem-nas da mesma maneira. É uma catástrofe. Eles traduzem os dois termos, affectio e affectus, por "afecção". Eu digo que é uma catástrofe porque, quando um filósofo emprega duas palavras é que, por princípio, ele tem uma razão, e além disso o francês fornece-nos facilmente as duas palavras que correspondem rigorosamente a affectio e a affectus, que são "affection" [afecção] para affectio e "affect" [afeto] para affectus. Alguns tradutores traduzem affectio por afecção e affectus por sentimento, é melhor do que traduzi-los pela mesma palavra, mas eu não vejo necessidade de recorrer à palavra "sentimento" já que o francês dispõe da palavra "affect" [afeto]. Assim, quando eu emprego a palavra "afeto" ela remete ao affectus de Spinoza, e quando eu disser a palavra "afecção", ela remete a affectio.
Primeiro ponto: o que é uma idéia? O que é uma idéia, para que possamos compreender mesmo as mais simples proposições de Spinoza. Sobre esse ponto Spinoza não é original, ele irá tomar a palavra idéia no sentido em que todo o mundo sempre a tomou. O que se chama idéia, no sentido em que todo o mundo sempre a tomou na história da filosofia, é um modo de pensamento que representa alguma coisa. Um modo de pensamento representativo. Por exemplo, a idéia de triângulo é o modo de pensamento que representa o triângulo. Sempre do ponto de vista da terminologia, é muito útil saber que desde a Idade Média esse aspecto da idéia é chamado "realidade objetiva". Em um texto do século XVII ou anterior, quando se encontra a realidade objetiva da idéia, isso sempre quer dizer: a idéia encarada como representação de alguma coisa. Diz-se da idéia, na medida em que ela representa alguma coisa, que ela possui uma realidade objetiva. É a relação entre a idéia e o objeto que ela representa.
Assim, parte-se de algo muito simples: a idéia é um modo de pensamento definido pelo seu caráter representativo. Isso já nos dá um primeiro ponto de partida para distinguir idéia e afeto (affectus), porque se chamará de afeto todo modo de pensamento que não representa nada. O que isso quer dizer? Tomem ao acaso o que qualquer um chama de afeto ou sentimento, uma esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo. Certamente há uma idéia da coisa amada, há uma idéia de algo que é esperado, mas a esperança enquanto tal ou o amor enquanto tal não representam nada, estritamente nada. Todo modo de pensamento enquanto não representativo será chamado de afeto. Uma volição, uma vontade, implica, a rigor, que eu queira alguma coisa; o que eu quero, isto é objeto de representação, o que eu quero é dado numa idéia, mas o fato de querer não é uma idéia, é um afeto, porque é um modo de pensamento não representativo. Isso funciona? Não é complicado.
Disso ele conclui imediatamente um primado da idéia sobre o afeto, e isso é comum a todo o século XVII; nem mesmo entrou-se ainda naquilo que é próprio a Spinoza. Há um primado da idéia sobre o afeto por uma razão muito simples: para amar é preciso ter uma idéia, por mais confusa que seja, por mais indeterminada que seja, daquilo que se ama. Para querer é preciso ter uma idéia, por mais confusa e indeterminada que seja, daquilo que se quer. Mesmo quando se diz "eu não sei o que eu sinto", há uma representação, por mais confusa que seja, do objeto. Há uma idéia extremamente confusa. Existe um primado ao mesmo tempo cronológico e lógico da idéia sobre o afeto, ou seja, dos modos representativos do pensamento sobre os modos não representativos. Haveria um contra-senso realmente desastroso se o leitor transformasse esse primado lógico numa redução. Que o afeto pressuponha a idéia, isso acima de tudo não quer dizer que ele se reduza à idéia ou a uma combinação de idéias. Nós devemos partir disto, que idéia e afeto são duas espécies de modos de pensamento que diferem em natureza, irredutíveis um ao outro, porém simplesmente tomados numa tal relação que o afeto pressupõe uma idéia, por mais confusa que seja. Esse é o primeiro ponto.
Segunda maneira menos superficial de apresentar a relação idéia-afeto. Vocês se lembram que partimos de uma característica muito simples da idéia. A idéia é um pensamento considerado como representativo, é um modo de pensamento enquanto representativo, e nesse sentido se falará da realidade objetiva de uma idéia. Só que uma idéia não tem somente uma realidade objetiva, e igualmente de acordo com a terminologia consagrada, ela também tem uma realidade formal. O que é a realidade formal da idéia, uma vez que se disse que a realidade objetiva é a realidade da idéia considerada como representando alguma coisa? Dir-se-á que a realidade formal da idéia - e então isto se torna muito mais complicado e ao mesmo tempo mais interessante - é a realidade da idéia considerada como sendo, ela mesma, alguma coisa.
A realidade objetiva da idéia de triângulo é a idéia de triângulo considerada como representando a coisa triângulo, mas a idéia de triângulo é nela mesma alguma coisa; aliás, na medida em que ela é alguma coisa, eu posso formar uma idéia dessa coisa, eu posso sempre formar uma idéia da idéia. Eu direi portanto que não apenas toda idéia é idéia de alguma coisa - dizer que toda idéia é idéia de alguma coisa é dizer que toda idéia possui uma realidade objetiva, que ela representa alguma coisa - mas eu direi também que a idéia possui uma realidade formal, uma vez que ela é nela mesma alguma coisa enquanto idéia.
O que isso quer dizer, a realidade formal da idéia? Não poderemos continuar indo muito mais longe nesse nível, será preciso deixar isso de lado. É preciso acrescentar apenas que essa realidade formal da idéia é o que Spinoza muito freqüentemente chama de um certo grau de realidade ou de perfeição que a idéia enquanto tal possui. Cada idéia possui, enquanto tal, um certo grau de realidade ou de perfeição. Sem dúvida esse grau de realidade ou perfeição está ligado ao objeto que ela representa, mas não se confunde com ele: a realidade formal da idéia, a saber, a coisa que a idéia é ou o grau de realidade ou de perfeição que ela possui em si, é seu caráter intrínseco. A realidade objetiva da idéia, a saber, a relação da idéia com o objeto que ela representa, é seu caráter extrínseco; pode ser que o caráter extrínseco e o caráter intrínseco da idéia estejam fundamentalmente ligados, mas não é a mesma coisa. A idéia de Deus e a idéia de rã possuem uma realidade objetiva diferente, a saber: elas não representam a mesma coisa, mas ao mesmo tempo elas não têm a mesma realidade intrínseca, elas não possuem a mesma realidade formal, a saber, que uma - vocês sentem-no muito bem - possui um grau de realidade infinitamente maior do que a outra. A idéia de Deus possui uma realidade formal, um grau de realidade ou de perfeição intrínseca infinitamente maior do que a idéia de rã, que é a idéia de uma coisa finita.
Se vocês compreenderam isso, vocês compreenderam quase tudo. Existe então uma realidade formal da idéia, isto é, a idéia é alguma coisa nela mesma, essa realidade formal é seu caráter intrínseco e é o grau de realidade ou de perfeição que ela envolve nela mesma.
Há pouco, quando definia a idéia por sua realidade objetiva ou por seu caráter representativo, eu opunha imediatamente a idéia ao afeto dizendo que o afeto é precisamente um modo de pensamento que não possui caráter representativo. Agora eu acabo de definir a idéia assim: toda idéia é alguma coisa, não somente é idéia de alguma coisa mas é alguma coisa, ou seja, possui um grau de realidade ou de perfeição que lhe é próprio. Portanto, é preciso que, nesse segundo nível, eu descubra uma diferença fundamental entre idéia e afeto. O que é que se passa concretamente na vida? Acontecem duas coisas... E é curioso, aí, como Spinoza emprega um método geométrico, vocês sabem que a Ética apresenta-se sob a forma de proposições, demonstrações, etc., e ao mesmo tempo, quanto mais é matemático, mais é extraordinariamente concreto. Tudo o que eu digo e todos estes comentários sobre idéia e afeto remetem aos livros II e III da Ética. Nos livros dois e três, ele nos faz uma espécie de retrato geométrico de nossa vida que, ao que me parece, é muito, muito convincente. Esse retrato geométrico consiste em dizer-nos, grosso modo, que nossas idéias se sucedem constantemente: uma idéia caça a outra, uma idéia substitui outra idéia, por exemplo instantaneamente. Uma percepção é um certo tipo de idéia, e logo veremos o porquê. Há pouco minha cabeça estava voltada para aí, eu via tal canto da sala, eu me viro, é uma outra idéia; eu passeio numa rua onde há pessoas conhecidas, eu digo "Bom-dia, Pedro", depois me viro e então digo "Bom-dia, Paulo". Ou então são as coisas que mudam: eu olho o sol, e o sol pouco a pouco desaparece e eu me encontro em plena noite; trata-se pois de uma série de sucessões, de coexistências de idéias, sucessões de idéias. Mas o que acontece além disso? Nossa vida cotidiana não é feita apenas de idéias que se sucedem. Spinoza emprega o termo "automaton"; nós somos, diz ele, autômatos espirituais, ou seja, é preferível dizer que são as idéias que se afirmam em nós do que dizer que somos nós que temos idéias. Mas o que acontece além dessa sucessão de idéias? Existe outra coisa, a saber: alguma coisa em mim não cessa de variar. Existe um regime de variação que não se confunde com a sucessão das próprias idéias. "Variações", isso deve servir-nos para o que queremos fazer, é uma lástima que ele não empregue essa palavra... O que é essa variação? Eu retomo o meu exemplo: eu cruzo na rua com Pedro, com quem antipatizo, e depois passo por ele, e digo "Bom-dia, Pedro", ou então sinto medo e depois, subitamente, vejo Paulo, que é tremendamente encantador, e eu digo "Bom-dia, Paulo", tranqüilizado e contente. Bem. O que acontece? Por um lado, sucessão de duas idéias, idéia de Pedro e idéia de Paulo; mas há outra coisa: também operou-se em mim uma variação - e aqui as palavras de Spinoza são muito precisas, vou citá-las: "(variação) de minha força de existir", ou outra palavra que ele emprega como sinônimo, "vis existendi", a força de existir, ou "potentia agendi", a potência de agir - e essas variações são perpétuas.
Eu diria que para Spinoza há uma variação contínua - e é isso que “existir” quer dizer - da força de existir ou da potência de agir. Como isso se conecta ao meu exemplo estúpido, mas que é de Spinoza, "Bom-dia, Pedro", "Bom-dia, Paulo"? Quando eu vejo Pedro, que me desagrada, uma idéia, a idéia de Pedro, se dá em mim; quando eu vejo Paulo, que me agrada, a idéia de Paulo se dá em mim. Cada uma dessas idéias possui, em relação a mim, um certo grau de realidade ou de perfeição. Eu diria que a idéia de Paulo possui, em relação a mim, mais perfeição intrínseca do que a idéia de Pedro, uma vez que a idéia de Paulo me contenta e a idéia de Pedro me desagrada. Quando a idéia de Paulo se sucede à idéia de Pedro, convém dizer que minha força de existir ou que minha potência de agir é aumentada ou favorecida; quando, ao contrário, se dá o inverso, quando após ter visto alguém que me deixava alegre eu vejo alguém que me deixa triste, eu digo que minha potência de agir é inibida ou impedida. Nesse nível, já não sabemos mais se ainda estamos lidando com convenções terminológicas ou se já estamos lidando com algo muito mais concreto.
Eu diria portanto que à medida que as idéias se sucedem em nós, cada qual tendo seu grau de perfeição, seu grau de realidade ou de perfeição intrínseca, aquele que tem essas idéias não pára de passar de um grau de perfeição a outro; em outras palavras, há uma variação contínua, sob a forma de aumento-diminuição-aumento-diminuição, da potência de agir ou da força de existir de alguém de acordo com as idéias que ele tem. Sintam como, através desse exercício penoso, aflora a beleza. Já não é nada má essa representação da existência, é verdadeiramente a existência nas ruas, é preciso imaginar Spinoza passeando, e ele vive verdadeiramente a existência como essa espécie de variação contínua: à medida que uma idéia substitui outra, eu não cesso de passar de um grau de perfeição a outro, mesmo que [a diferença] seja minúscula, e é essa espécie de linha melódica da variação contínua que irá definir o afeto [affectus] ao mesmo tempo na sua correlação com as idéias e em sua diferença de natureza com as idéias. Compreender essa diferença de natureza e essa correlação. Cabe a vocês dizer se isso convém a vocês ou não. Todos nós temos [agora] uma definição mais sólida do affectus; o affectus em Spinoza é a variação (é ele quem fala pela minha boca; ele não chegou a dizê-lo porque morreu jovem demais...), é a variação contínua da força de existir na medida em que essa variação é determinada pelas idéias que se tem. Assim, num texto muito importante do fim do livro III, cujo título é "Definição geral dos afetos", Spinoza nos diz: sobretudo não creiam que o affectus, tal como eu o concebo, depende de uma comparação entre as idéias. Ele quer dizer que a idéia pode muito bem ser primeira em relação ao afeto, mas idéia e afeto são duas coisas de natureza diferente; o afeto não se reduz a uma comparação intelectual das idéias, o afeto é constituído pela transição vivida ou pela passagem vivida de um grau de perfeição a outro, na medida em que essa passagem é determinada pelas idéias; porém em si mesmo ele não consiste em uma idéia, ele constitui o afeto.
Quando eu passo da idéia de Pedro à idéia de Paulo, eu digo que minha potência de agir é aumentada; quando eu passo da idéia de Paulo à idéia de Pedro, eu digo que minha potência de agir é diminuída. Isso equivale a dizer que quando eu vejo Pedro, sou afetado de tristeza; quando eu vejo Paulo, sou afetado de alegria. E sobre essa linha melódica de variação contínua constituída pelo afeto, Spinoza irá determinar dois pólos, alegria-tristeza, que serão para ele as paixões fundamentais: a tristeza será toda paixão, não importa qual, que envolva uma diminuição de minha potência de agir, e a alegria será toda paixão envolvendo um aumento de minha potência de agir. Isso permitirá que Spinoza, por exemplo, realize uma abertura em direção a um problema moral e político muito fundamental, que será sua própria maneira de estabelecer o problema político: como acontece que as pessoas que têm o poder, não importa em que domínio, tenham necessidade de afetar-nos de uma maneira triste? As paixões tristes como necessárias: inspirar paixões tristes é necessário ao exercício do poder. E Spinoza diz, no “Tratado teológico-político”, que esse é o laço profundo entre o déspota e o sacerdote: eles têm necessidade da tristeza de seus súditos. Aqui, vocês compreenderão com facilidade que ele não toma "tristeza" num sentido vago, ele toma "tristeza" no sentido rigoroso que ele soube lhe dar: a tristeza é o afeto considerado como envolvendo a diminuição da potência de agir.
Quando eu dizia, na minha primeira distinção idéia-afeto, que o afeto é o modo de pensamento que não representa nada, eu diria em termos técnicos que se tratava de uma simples definição nominal, ou, se preferirem, exterior, extrínseca. Na segunda distinção, quando eu digo que a idéia é aquilo que possui em si uma realidade intrínseca, e que o afeto é a variação contínua ou a passagem de um grau de realidade a outro, ou de um grau de perfeição a outro, nós já não estamos no terreno das definições ditas nominais, nós já temos aí uma definição real, chamando de definição real a definição que, ao mesmo tempo em que define a coisa, mostra a possibilidade dessa coisa.
O que é importante é que vocês percebam como, segundo Spinoza, nós somos fabricados como autômatos espirituais. Enquanto autômatos espirituais, há o tempo todo idéias que se sucedem em nós, e de acordo com essa sucessão de idéias, nossa potência de agir ou nossa força de existir é aumentada ou é diminuída de uma maneira contínua, sobre uma linha contínua, e é isso que nós chamamos afeto [affectus], é isso que nós chamamos existir.
O affectus é portanto a variação contínua da força de existir de alguém, na medida em que essa variação é determinada pelas idéias que ele tem. Porém, ainda uma vez, "determinada" não quer dizer que a variação se reduza às idéias que ele tem, uma vez que a idéia que eu tenho só dá conta de sua conseqüência, a saber, que ela aumente minha potência de agir ou ao contrário a diminua em relação à idéia que eu tinha imediatamente antes, e não se trata de uma comparação, trata-se de uma espécie de deslizamento, de queda ou de elevação da potência de agir. Nenhum problema? Nenhuma questão?
Para Spinoza existem três tipos de idéias. Por enquanto, não falaremos mais do affectus, do afeto, pois com efeito o afeto é determinado pelas idéias que temos, ele não se reduz às idéias que temos, mas é determinado pelas idéias que temos; portanto, o que é essencial é ver quais são essas idéias que determinam os afetos, embora mantendo presente em nosso espírito que o afeto não se reduz às idéias que se tem, e é absolutamente irredutível a elas. Ele é de outra ordem.
Entre as três espécies de idéias que Spinoza distingue estão as idéias-afecções, affectio; veremos que o affectio, contrariamente ao affectus, é um certo tipo de idéias. Em primeiro lugar, portanto, haveria as idéias-afecctio, em segundo lugar nós chegamos a formar também idéias que Spinoza chama de noções, e em terceiro lugar, para muito poucos entre nós, pois é extremamente difícil, chegamos a formar idéias de essências. Antes de mais nada, pois, são três tipos de idéias.
O que é uma afecção (affectio)? Eu vejo vocês literalmente abaixando os olhos... E no entanto tudo isto é, ao contrário, divertido. À primeira vista, se nos atemos ao texto de Spinoza, ela não tem nada a ver com uma idéia, mas tampouco tem a ver com um afeto. Tínhamos determinado o afeto [affectus] como a variação da potência de agir. E uma afecção, o que é? Numa primeira determinação, a afecção é isto: é o estado de um corpo considerado como sofrendo a ação de um outro corpo. O que isso quer dizer? "Eu sinto o sol sobre mim", ou então, "um raio de sol pousa sobre você": é uma afecção do seu corpo. O que é uma afecção do seu corpo? Não o sol, mas a ação do sol ou o efeito do sol sobre você. Em outros termos, um efeito, ou a ação que um corpo produz sobre outro - note-se que Spinoza, por razões decorrentes de sua física, não acredita em uma ação à distância: a ação implica sempre um contato - é uma mistura de corpos. A afecção [affectio] é uma mistura de dois corpos, um corpo que se diz agir sobre outro, e um corpo que recolhe o traço do primeiro. Toda mistura de corpos será chamada de afecção.
Spinoza conclui a partir disso que a afecção [affectio], sendo definida como uma mistura de corpos, indica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeccionado [affectionné] ou afetado [affecté]; a afecção indica muito mais a natureza do corpo afetado do que a natureza do corpo afetante. Ele analisa seu exemplo célebre, "quando nós olhamos o sol, nós imaginamos que sua distância em relação a nós é de cerca de duzentos pés". [Livro II, Proposição 35, Escólio]. Isso é uma affectio ou, ao menos, é a percepção de uma affectio. Está claro que minha percepção do sol indica muito mais a constituição de meu corpo, a maneira pela qual meu corpo está constituído, do que a maneira pela qual o sol está constituído. Assim, eu percebo o sol em virtude do estado de minhas percepções visuais. Uma mosca perceberá o sol de maneira diferente.
Para preservar o rigor de sua terminologia, Spinoza dirá que uma affectio indica mais a natureza do corpo modificado do que a natureza do corpo modificante, e que ela envolve a natureza do corpo modificante. Eu diria que para Spinoza o primeiro tipo de idéia é todo modo de pensamento que representa uma afecção do corpo; ou seja, a mistura de um corpo com outro, ou então o traço de um outro corpo sobre meu corpo será chamado idéia de afecção. É nesse sentido que se poderá dizer que o primeiro tipo de idéias é a idéia-afecção. E esse primeiro tipo de idéias corresponde ao que Spinoza chama de primeiro gênero de conhecimento. É o mais baixo. Porque é o mais baixo? É óbvio que é o mais baixo porque essas idéias de afecção só conhecem a coisa pelos seus efeitos: eu sinto a afecção do sol sobre mim, o traço do sol sobre mim. É o efeito do sol sobre meu corpo. Porém as causas, a saber, o que é meu corpo, o que é o corpo do sol, e a relação entre esses dois corpos de tal maneira que um produza sobre o outro um determinado efeito ao invés de produzir outra coisa, sobre isso eu não sei absolutamente nada. Tomemos um outro exemplo: "o sol faz a cera fundir-se e faz a argila endurecer." Isso não é nada. São idéias de affectio. Eu vejo a cera que escorre, e bem ao seu lado vejo a argila que endurece; é uma afecção da cera e uma afecção da argila, e eu tenho uma idéia dessas afecções, eu percebo efeitos. Em virtude de que constituição corporal a argila endurece sob a ação do sol? Enquanto eu permanecer na percepção da afecção, nada saberei a seu respeito. Dir-se-á que as idéias-afecções são representações de efeitos sem suas causas, e é precisamente isso que Spinoza chama de idéias inadequadas. São idéias de mistura separadas das causas da mistura.
Assim, que nós só tenhamos, no nível das idéias-afecções, idéias inadequadas e confusas, isso é perfeitamente compreensível, pois afinal o que são as idéias-afecções na ordem da vida? E sem dúvida, muitos entre nós, que não se dedicam o bastante à filosofia, infelizmente vivem assim.
Uma vez, uma única vez, Spinoza utiliza uma palavra latina muito estranha porém muito importante, que é "occursus". Literalmente, é o "encontro". Na medida em que tenho idéias-afecções, eu vivo ao acaso dos encontros: eu passeio na rua, vejo Pedro que não me agrada, e isso em função da constituição do seu corpo e da sua alma e da constituição do meu corpo e da minha alma. Alguém que me desagrada, corpo e alma, o que isso quer dizer? Eu gostaria de fazê-los compreender porque Spinoza teve, notadamente, uma reputação muito forte de materialista apesar de falar o tempo todo do espírito e da alma, e uma reputação de ateu apesar de falar o tempo todo de Deus: é bastante curioso. Percebe-se com facilidade porque as pessoas diziam que é puro materialismo. Quando eu digo: aquele tipo não me agrada, isso quer dizer literalmente que o efeito do seu corpo sobre o meu, que o efeito de sua alma sobre a minha, me afeta de maneira desagradável, são misturas de corpos ou misturas de almas. Há uma mistura nociva ou uma boa mistura, tanto no nível do corpo quanto no da alma. É exatamente como: "Eu não gosto de queijo." O que isso quer dizer? "Eu não gosto de queijo": isso quer dizer que o queijo se mistura com o meu corpo de tal modo que eu sou modificado de maneira desagradável, não quer dizer nada além disso. Portanto não há nenhuma razão para estabelecer diferenças entre simpatias espirituais e relações corporais. "Eu não gosto de queijo" também diz respeito à alma, e "Pedro (ou Paulo) não me agrada" também diz respeito ao corpo, é tudo a mesma coisa. Simplesmente, por que essa idéia-afecção, essa mistura, é uma idéia confusa? Ela é forçosamente confusa e inadequada porque eu absolutamente não sei, nesse nível, em virtude de que e como o corpo ou a alma de Pedro são constituídos, de tal maneira que sua alma não convém à minha, ou de tal maneira que seu corpo não convém ao meu. Eu posso apenas dizer que isso não convém, mas em virtude de que constituição dos dois corpos, do corpo que afeta e do corpo que é afetado, do corpo que age e do corpo que padece, nesse nível eu não sei rigorosamente nada. Como diz Spinoza, são conseqüências separadas de suas premissas, ou, se preferirem, é um conhecimento dos efeitos independente do conhecimento das causas. É portanto ao acaso dos encontros. O que é que pode acontecer ao acaso dos encontros?
Mas o que é um corpo? Esse seria o objeto de um curso específico, e eu não vou desenvolvê-lo. A teoria sobre o que é um corpo, ou então uma alma, dá no mesmo, encontra-se no livro II da Ética. Para Spinoza, a individualidade de um corpo se define assim: é quando uma relação composta ou complexa (eu insisto nisso, muito composta, muito complexa) de movimento e de repouso se mantém através de todas as mudanças que afetam as partes desse corpo. É a permanência de uma relação de movimento e de repouso através de todas as mudanças que afetam todas as partes, ao infinito, do corpo considerado. Vocês compreendem que um corpo é necessariamente composto ao infinito. Meu olho, por exemplo, meu olho e a relativa constância de meu olho, se define por uma certa relação de movimento e de repouso através de todas as modificações das diversas partes do meu olho; mas meu próprio olho, que já tem uma infinidade de partes, é uma parte entre as partes do meu corpo, ele é uma parte do rosto, e o rosto, por sua vez, é uma parte do meu corpo, etc. Portanto vocês têm todos os tipos de relações que irão se compor umas com as outras para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas em cada um desses níveis ou graus, a individualidade será definida por uma certa relação composta de movimento e de repouso.
O que pode acontecer se meu corpo é feito desse modo, uma certa relação de movimento e de repouso que subsume uma infinidade de partes? Podem acontecer duas coisas: eu como alguma coisa que eu adoro, ou então, outro exemplo, eu como alguma coisa e caio envenenado. Literalmente, em um caso eu fiz um bom encontro, e no outro, fiz um mau encontro. Tudo isso refere-se à categoria do "occursus". Quando eu faço uma mau encontro, isso quer dizer que o corpo que se mistura com o meu destrói minha relação constitutiva, ou tende a destruir uma de minhas relações subordinadas. Por exemplo, eu como alguma coisa e tenho dor de barriga, e isso não me mata; mas isso destruiu ou inibiu, comprometeu uma das minhas sub-relações, uma das relações que me compõe. Depois eu como alguma coisa e morro: nesse caso, isso decompôs minha relação composta, decompôs a relação complexa que definia minha individualidade. Isso não destruiu simplesmente uma das minhas relações subordinadas que compunha uma de minhas sub-individualidades, isso destruiu a relação característica do meu corpo. Quando eu como alguma coisa que me convém, se dá o inverso.
"O que é o mal?", pergunta Spinoza. Encontra-se esse tema na correspondência; são cartas que ele envia a um jovem holandês extremamente maldoso. Esse holandês não gostava de Spinoza e o atacava constantemente, perguntando-lhe: "Diga-me o que é, para você, o mal." Vocês sabem que, naquela época, as cartas eram algo muito importante, e os filósofos enviavam muitas cartas. Spinoza, que era muito gentil, acreditava inicialmente que se tratava de um jovem que queria instruir-se, e pouco a pouco compreendeu que não era nada disso, que o holandês queria sua pele. A cólera de Blyenbergh, que era um bom cristão, vai inchando de carta em carta, e ele termina por dizer-lhe: "Mas você é o diabo!" Spinoza diz que o mal, isso não é difícil, o mal é um mau encontro. Encontrar um corpo que se mistura mal com o seu. Misturar-se mal quer dizer misturar-se em condições tais que uma das suas relações subordinadas ou sua relação constituinte é ameaçada, comprometida ou mesmo destruída.
Cada vez mais alegre, querendo mostrar que tem razão, Spinoza analisa à sua maneira o exemplo de Adão. Nas condições em que vivemos, nós parecemos condenados a ter um único tipo de idéias, as idéias-afecções. Por meio de que milagre seria possível escapar dessas ações de corpos que não aguardaram por nós para existir, como poderíamos nos elevar a um conhecimento das causas? Por enquanto, o que vemos é que estamos condenados ao acaso dos encontros desde que nascemos, e isso não nos leva muito longe. O que isso implica? Implica uma reação furiosa contra Descartes, pois Spinoza afirmará com muita força, no livro II, que nós não podemos conhecer a nós mesmos e aos corpos exteriores senão pelas afecções que os corpos exteriores produzem sobre o nosso. Para aqueles que se lembram um pouco de Descartes, trata-se da proposição anticartesiana de base, uma vez que exclui completamente a apreensão da coisa pensante por si mesma, ou seja, exclui completamente a possibilidade do cogito. Eu só conheço as misturas de corpos, e só conheço a mim mesmo pela ação dos outros corpos sobre mim, pelas misturas. Isso é não somente anticartesianismo, mas também anticristianismo. Por quê? Porque um dos pontos fundamentais da teologia é a perfeição imediata do primeiro homem criado, o que recebe o nome, em teologia, de teoria da perfeição adâmica. Adão, antes de pecar, é criado tão perfeito quanto possível, e depois há a história do pecado que é precisamente a história da queda, mas a queda pressupõe um Adão perfeito enquanto criatura. Essa idéia parece, para Spinoza, muito engraçada; para ele, isso não é possível. Supondo-se dada a idéia de um primeiro homem, ela só pode ser dada como idéia do ser mais impotente, do ser mais imperfeito possível, já que o primeiro homem só pode existir ao acaso dos encontros e das ações dos outros corpos sobre si mesmo. Portanto, supondo-se que Adão exista, ele existe num modo de absoluta imperfeição e inadequação, ele existe à maneira de um pequeno bebê que está entregue ao acaso dos encontros, a menos que esteja num ambiente protegido, porém aqui eu falei demais... O que seria um ambiente protegido?
O mal é um mau encontro. O que isso quer dizer? Spinoza, na sua correspondência com o holandês, lhe diz: "Você se refere o tempo todo ao exemplo de Deus que proibiu Adão de comer a maçã, e cita isso como exemplo de uma lei moral: a primeira interdição." "Mas isso não é de modo algum o que acontece", diz Spinoza, retomando toda a história de Adão sob a forma de um envenenamento e de uma intoxicação. O que acontece na realidade? Deus jamais proibiu nada a Adão, ele lhe concedeu uma revelação. Ele o preveniu sobre o efeito nocivo que o corpo da maçã teria sobre a constituição do corpo de Adão. Em outras palavras, a maçã é um veneno para Adão. O corpo da maçã existe sob uma tal relação característica que ela só pode agir sobre o corpo de Adão, tal e qual ele é constituído, decompondo a relação característica do corpo de Adão. E se ele errou ao não escutar Deus, não é no sentido de que ele o teria desobedecido, é porque ele nada compreendeu. Isso também existe entre os animais, alguns possuem um instinto que os desvia do que é veneno para eles, e existem outros que, quanto a isso, não possuem esse instinto.
Quando eu faço um encontro de modo que a relação do corpo que me modifica, que age sobre mim, combina-se com minha própria relação, com a relação característica do meu próprio corpo, o que é que acontece? Eu diria que minha potência de agir é aumentada; ela é aumentada ao menos sob aquela relação. Quando, ao contrário, eu faço um encontro de modo que a relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma de minhas relações, ou minha relação característica, eu diria que minha potência de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Nós voltamos a encontrar aqui nossos dois afetos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria.
Para reagrupar tudo nesse nível, em função das idéias de afecção que eu tenho, há dois tipos de idéias de afecção: a idéia de um efeito que se concilia ou favorece minha própria relação característica, e a idéia de um efeito que compromete ou destrói minha própria relação característica. A esses dois tipos de idéias de afecção irão corresponder os dois movimentos de variação do affectus, os dois pólos da variação: em um caso minha potência de agir é aumentada e eu experimento um affectus de alegria, no outro caso minha potência de agir é diminuída e eu experimento um affectus de tristeza. E todas as paixões, em seus detalhes, Spinoza irá engendrá-las a partir desses dois afetos fundamentais: a alegria como aumento da potência de agir, a tristeza como diminuição ou destruição da potência de agir. Isso equivale a dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por uma certa relação característica, complexa, mas eu também poderia dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por um certo poder de ser afetado. Se vocês considerarem os animais, Spinoza nos dirá com muita força que aquilo que importa nos animais não são os gêneros e as espécies; os gêneros e as espécies são noções absolutamente confusas, são idéias abstratas. O que importa é: de que um corpo é capaz? E aqui ele lança uma das questões mais fundamentais de toda a sua filosofia (antes dele houve Hobbes e outros) dizendo que a única questão está em não sabermos sequer de que um corpo é capaz, nós tagarelamos sobre a alma e sobre o espírito e não sabemos o que pode um corpo. Ora, um corpo deve ser definido pelo conjunto das relações que o compõe, ou, o que dá exatamente no mesmo, pelo seu poder de ser afetado. E enquanto vocês não souberem qual é o poder de ser afetado de um corpo, enquanto vocês o aprenderem assim, ao acaso dos encontros, vocês não estarão de posse da vida sábia, não estarão de posse da sabedoria.
Saber de que vocês são capazes. Não como questão moral, mas antes de mais nada como questão física, como questão dirigida ao corpo e à alma. Um corpo possui algo fundamentalmente oculto: pode-se falar da espécie humana, do gênero humano, mas isso não nos dirá o que é capaz de afetar nosso corpo, o que é capaz de destruí-lo. Esse poder de ser afetado é a única questão. O que distingue uma rã de um macaco? Não são caracteres específicos ou genéricos, diz Spinoza, mas o fato de que eles não são capazes das mesmas afecções. Assim, seria preciso fazer, para cada animal, verdadeiros mapas de afetos, os afetos dos quais um bicho é capaz. Para os homens é a mesma coisa: os afetos dos quais determinado homem é capaz. Nesse momento percebe-se que, segundo as culturas, segundo as sociedades, os homens não são capazes dos mesmos afetos. É bem conhecido o método pelo qual certos governos liquidaram os índios da América do Sul, que foi deixar nos caminhos usados pelos índios roupas de pessoas gripadas, roupas tomadas nos dispensários, porque os índios não suportam o afeto gripe. Nem era necessário usar uma metralhadora, eles caíam como moscas. E é óbvio que nós, nas condições de vida da floresta, nos arriscamos a não viver muito tempo. Portanto, gênero humano, espécie humana ou mesmo raça, Spinoza dirá que isso não tem nenhuma importância enquanto não se fizer a lista dos afetos dos quais alguém é capaz, no sentido mais forte da palavra capaz, compreendidas aí as doenças das quais ele é capaz. É evidente que o cavalo de corrida e o cavalo de carga são da mesma espécie, são duas variedades da mesma espécie, e no entanto os afetos são muito diferentes, as doenças são absolutamente diferentes, a capacidade de ser afetado é completamente diferente e, desse ponto de vista, é preciso dizer que um cavalo de carga está muito mais próximo de um boi do que de um cavalo de corrida. Assim, um mapa etológico dos afetos é muito diferente de uma determinação genérica e específica dos animais.
Vocês vêem que o poder de ser afetado pode ser preenchido de duas maneiras: quando eu sou envenenado, meu poder de ser afetado é absolutamente preenchido, mas ele é preenchido de tal maneira que minha potência de agir tende para zero, ou seja, é inibida. Inversamente, quando eu experimento alegria, ou seja, quando eu encontro um corpo que compõe sua relação com a minha, meu poder de ser afetado é igualmente preenchido e minha potência de agir aumenta, e tende para... quê? No caso de um mau encontro, toda a minha força de existir (vis existendi) é concentrada, tendendo para o seguinte alvo: investir o traço do corpo que me afeta para repelir o efeito desse corpo, de modo que minha potência de agir foi diminuída na mesma proporção.
Essas coisas são muito concretas. Sua cabeça dói e você diz: "Eu já não posso nem mesmo ler." Isso quer dizer que sua força de existir investiu a tal ponto o traço de sua dor de cabeça que sua potência de agir foi diminuída na mesma proporção. Ao contrário, quando você está contente e diz: "Ah, como eu me sinto bem", você também está contente porque corpos se misturaram ao seu em proporções e condições que são favoráveis à sua relação; nesse momento, a potência do corpo que o afeta combina-se com a sua de tal modo que sua potência de agir é aumentada. Nos dois casos o seu poder de ser afetado será completamente efetuado, mas ele pode ser efetuado de tal modo que sua potência de agir diminua ao infinito ou que a potência de agir aumente ao infinito.
Ao infinito? Será que isso é verdade? Evidentemente não, porque no nosso nível as forças de existir, os poderes de ser afetado e as potências de agir são forçosamente finitos. Apenas Deus tem uma potência absolutamente infinita. Bom, mas dentro de certos limites, eu não deixarei de passar por essas variações da potência de agir em função das idéias de afecção que eu tenho, não deixarei de seguir a linha de variação contínua do affectus em função das idéias-afecção que eu tenho e dos encontros que eu faço, de tal modo que, a cada instante, meu poder de ser afetado é completamente efetuado, completamente preenchido. Preenchido, simplesmente, sob o modo da tristeza ou sob o modo da alegria. Os dois ao mesmo tempo, bem entendido, pois sabemos que, nas sub-relações que nos compõe, uma parte de nós mesmos pode estar composta de tristeza e uma outra parte de nós mesmos estar composta de alegria. Existem tristezas locais e alegrias locais. Por exemplo, Spinoza define a cócega como uma alegria local, mas isso não quer dizer que tudo seja alegria na cócega; ela pode ser uma alegria de tal natureza que implique uma irritação coexistente de uma outra natureza, irritação que é tristeza: meu poder de ser afetado tende a ser excedido. Nada é bom para alguém que excede seu poder de ser afetado. Um poder de ser afetado é realmente uma intensidade ou um limiar de intensidade. O que Spinoza realmente quer é definir a essência de alguém de maneira intensiva, como uma quantidade intensiva. Enquanto vocês não conhecem suas intensidades, vocês se arriscam a ter um mau encontro, e poderão muito bem dizer que é belo o excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada além do fracasso. Advertência quanto às superdoses [overdoses]. É precisamente o fenômeno do poder de ser afetado que é excedido com uma destruição total.
Quando se tratava de fazer filosofia, certamente a minha geração era na média muito mais cultivada ou conhecedora, mas em compensação havia uma espécie de incultura muito surpreendente em outros domínios, em música, em pintura, em cinema. Eu tenho a impressão de que para muitos de vocês a relação mudou, ou seja, que vocês não sabem nada, absolutamente nada de filosofia mas sabem, ou melhor, vocês têm um domínio concreto de coisas como cor, vocês sabem o que é um som ou uma imagem. Uma filosofia é uma espécie de sintetizador de conceitos, criar um conceito não é uma questão de ideologia. Um conceito é um bicho.
Até agora eu defini unicamente o aumento e a diminuição da potência de agir, ou que a potência de agir aumenta ou diminui, sendo o afeto (affectus) correspondente sempre uma paixão. Seja ele uma alegria que aumenta minha potência de agir ou uma tristeza que diminui minha potência de agir, nos dois casos trata-se de paixões: paixões alegres ou paixões tristes. Ainda uma vez Spinoza denuncia um complô no universo daqueles que têm interesse em nos afetar de paixões tristes. O sacerdote precisa da tristeza de seus súditos, ele precisa que seus súditos se sintam culpados. Mas eu ainda não defini o que é a potência de agir. As auto-afecções ou afetos ativos supõe que nós estejamos de posse de nossa potência de agir e que, neste ou naquele ponto, tenhamos saído do domínio das paixões para entrar no domínio das ações. É o que nos resta ainda para ver.
Como poderíamos escapar das idéias-afecção, como poderíamos escapar dos afetos passivos que consistem no aumento ou diminuição de nossa potência de agir, como poderíamos escapar do mundo das idéias inadequadas, já que dissemos que nossa condição parece condenar-nos estritamente a esse mundo? É por isso que é preciso ler a Ética como preparando uma espécie de giro dramático [coup de théâtre]. Ele irá nos falar de afetos ativos onde não existem mais paixões, onde a potência de agir é conquistada ao invés de passar por todas essas variações contínuas. Existe aqui um ponto muito preciso: há uma diferença fundamental entre ética e moral. Spinoza não produz uma moral, e por uma razão muito simples: ele jamais se pergunta o que devemos fazer, ele pergunta-se o tempo todo de que nós somos capazes, o que está em nossa potência; a ética é um problema de potência, não é jamais um problema de dever. Nesse sentido, Spinoza é profundamente imoral. Ele possui uma natureza afortunada, pois o problema moral, o bem e o mal, ele nem mesmo compreende o que isso quer dizer. O que ele compreende, são os bons encontros, os maus encontros, os aumentos e diminuições de potência. Assim, ele produz uma ética e de modo algum uma moral. É por isso que ele marcou Nietzsche com tanta força.
Nós estamos completamente encerrados neste mundo das idéias-afecção e dessas contínuas variações afetivas de alegria e de tristeza, então ora minha potência de agir aumenta, que bom, ora ela diminui; mas quer ela aumente, quer ela diminua, eu permaneço na paixão porque, nos dois casos, eu ainda estou separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela. Portanto, quando minha potência de agir aumenta, isso quer dizer que eu estou relativamente menos separado dela, e vice-versa, porém eu estou formalmente separado de minha potência de agir, eu não estou de posse dela. Em outros termos, eu não sou causa de meus próprios afetos, e uma vez que eu não sou causa de meus próprios afetos, eles são produzidos em mim por outra coisa: eu sou portanto passivo, eu estou no mundo da paixão.
Mas existem as idéias-noção e as idéias-essência. E já no nível das idéias-noção irá surgir neste mundo uma espécie de saída. Estamos completamente sufocados, estamos encerrados num mundo de impotência absoluta; mesmo quando minha potência de agir aumenta, é num segmento de variação, e nada me garante que na próxima esquina eu não receberei uma enorme paulada na cabeça, fazendo cair novamente minha potência de agir.
Vocês estão lembrados de que uma idéia-afecção é a idéia de uma mistura, isto é, a idéia de um efeito de um corpo sobre o meu. Uma idéia-noção já não diz respeito ao efeito de um outro corpo sobre o meu, é uma idéia que concerne e que tem por objeto a conveniência ou a inconveniência das relações características entre os dois corpos. Existe esse tipo de idéia? Não sabemos ainda se existe, mas sempre é possível definir alguma coisa, mesmo que seja para concluir em seguida que ela não pode existir: é o que se chama de definição nominal. Eu diria que a definição nominal de noção é: uma idéia que, ao invés de representar o efeito de um corpo sobre outro, ou seja, a mistura de dois corpos, representa a conveniência ou a inconveniência interna das relações características de dois corpos.
Exemplo: se eu soubesse o bastante sobre a relação característica do corpo chamado arsênico e sobre a relação característica do corpo humano, eu poderia formar uma noção a respeito do que faz com que essas duas relações não convenham entre si, chegando o arsênico, sob sua relação característica, a destruir a relação característica do meu corpo: eu sou envenenado, eu morro.
Vocês vêem que, à diferença da idéia de afecção, ao invés de ser a apreensão da mistura extrínseca de um corpo com outro, ou do efeito de um corpo sobre outro, a noção elevou-se à compreensão da causa, a saber: se a mistura produz este ou aquele efeito, é em virtude da natureza da relação entre os corpos considerados e da maneira pela qual a relação de um corpo se compõe com a relação do outro corpo. Sempre existe composição de relações. Quando eu sou envenenado, é porque o corpo arsênico induziu as partes de meu corpo a entrar sob uma relação diferente da relação que me caracteriza. Nesse momento, as partes do meu corpo entram sob uma nova relação (induzida pelo arsênico) que se compõe perfeitamente com o arsênico; o arsênico está feliz porque ele se nutre de mim. O arsênico experimenta uma paixão alegre pois, como bem disse Spinoza, todo corpo possui uma alma. Portanto o arsênico está alegre, mas eu, evidentemente, não estou. Ele induziu partes de meu corpo a entrar sob uma relação que se compõe com ele, arsênico. Quanto a mim, eu estou triste, eu vou morrer. Vocês vêem que a noção, se pudermos chegar a ela, é um truque formidável.
Não estamos longe de uma geometria analítica. Uma noção não é de modo algum abstrata, ela é muito concreta: este corpo, aquele corpo. Se eu estivesse de posse da relação característica da alma e do corpo daquele de quem digo que não me agrada, em relação à minha própria relação característica, eu compreenderia tudo, eu conheceria pelas causas ao invés de conhecer apenas efeitos separados de suas causas. Nesse momento, eu teria uma idéia adequada. O mesmo aconteceria se eu compreendesse porque alguém me agrada. Eu tomei como exemplo as relações alimentares, mas não é preciso mudar uma linha para dar conta das relações amorosas. Não é que Spinoza conceba o amor como alimentação, pois ele também concebe a alimentação como amor. Tomemos um casamento à Strindberg, essa espécie de decomposição de relações que depois se recompõe para recomeçar. O que é essa variação contínua do affectus, e como é possível que certa inconveniência convenha a alguns? Por que alguns só podem viver sob a forma de uma cena conjugal indefinidamente repetida? Eles saem dela como se fosse para eles um banho de água fresca.
Vocês compreendem a diferença entre uma idéia-noção e uma idéia-afecção. Uma idéia-noção é forçosamente adequada porque é um conhecimento pelas causas. Spinoza não emprega somente o termo noção para qualificar esse segundo tipo de idéia, mas emprega o termo noção comum. A palavra é bastante ambígua: Será que ela quer dizer "comum a todos os espíritos"? Sim e não; Spinoza é muito minucioso a esse respeito. Em todo caso, jamais confundam uma noção comum com uma abstração. Ele define a noção comum sempre assim: é a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos ou a muitos corpos - no mínimo dois - e que é comum ao todo e à parte. Portanto, certamente existem noções comuns que são comuns a todos os espíritos, mas elas só são comuns a todos os espíritos na medida em que elas são, em primeiro lugar, a idéia de alguma coisa que é comum a todos os corpos. Assim, elas não são de modo algum noções abstratas. O que é comum a todos os corpos? Por exemplo, estar em movimento ou em repouso. O movimento e o repouso serão objetos de noções ditas comuns a todos os corpos. Existem noções comuns que designam algo de comum a dois corpos ou a duas almas; por exemplo, alguém que eu amo. Ainda uma vez: as noções comuns não são algo de abstrato, não têm nada a ver com espécies e gêneros, elas são na verdade o enunciado daquilo que é comum a muitos corpos ou a todos os corpos; ora, como não existe um único corpo que não seja, ele mesmo, muitos, pode-se dizer que há coisas comuns ou noções comuns em cada corpo. Donde volta-se à questão: como se pode escapar dessa situação que nos condenava às misturas?
Aqui os textos de Spinoza são muito complicados. Não se pode conceber essa saída senão da seguinte maneira: grosso modo, quando eu sou afetado ao acaso dos encontros, ou sou afetado de tristeza, ou de alegria. Quando sou afetado de tristeza, minha potência de agir diminui, ou seja, eu estou ainda mais separado dessa potência. Quando sou afetado de alegria, ela aumenta, ou seja, eu estou menos separado dessa potência. Bem. Se vocês consideram-se afetados de tristeza, creio que tudo está arruinado, não há mais saída, por uma razão muito simples: nada na tristeza, que diminui sua potência de agir, nada na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum de algo que seria comum ao seu corpo e aos corpos que os afetam de tristeza. Por uma razão muito simples: é que o corpo que os afeta de tristeza só os afeta de tristeza na medida em que ele os afeta sob uma relação que não convém com a sua. Spinoza quer dizer algo muito simples, que a tristeza não torna ninguém inteligente. Na tristeza estamos arruinados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os súditos sejam tristes. A angústia jamais foi um jogo de cultura da inteligência ou da vivacidade. Quando vocês têm um afeto triste, é porque um corpo age sobre o seu, uma alma age sobre a sua em condições tais e sob uma relação que não convém com a sua. Por conseguinte, nada na tristeza pode induzi-los a formar a noção comum, isto é, a idéia de algo em comum entre os dois corpos e as duas almas. O que ele está prestes a dizer está cheio de sabedoria: é por isso que pensar na morte é a coisa mais imunda. Ele se opõe a toda tradição filosófica que é uma meditação sobre a morte. Sua fórmula diz que a filosofia é uma meditação da vida e não da morte; obviamente, porque a morte é sempre um mau encontro.
Outro caso. Você é afetado de alegria. Sua potência de agir é aumentada, isso não quer dizer que você esteja de posse dela, mas o fato de que você esteja sendo afetado de alegria significa e indica que o corpo ou a alma que o afeta desse modo afeta você sob uma relação que se combina com a sua, e isso abrange desde a fórmula do amor até a fórmula alimentar. Num afeto de alegria, portanto, o corpo que o afeta é indicado como compondo a relação dele com a sua, ao invés da relação dele decompor a sua. Desde então, alguma coisa irá induzi-lo a formar a noção do que é comum ao corpo que o afeta e ao seu, à alma que o afeta e à sua. Nesse sentido, a alegria torna inteligente. Sentimos que aqui há um truque interessante porque, método geométrico ou não, estaremos plenamente de acordo, ele pode demonstrá-lo. Mas existe um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma maneira de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver. É preciso ter desde já um tal ódio às paixões tristes, a lista das paixões tristes em Spinoza é infinita, ele chegará a dizer que toda idéia de recompensa envolve uma paixão triste, toda idéia de orgulho, a culpabilidade. É um dos momentos mais maravilhosos da Ética.
É como se os afetos de alegria fossem um trampolim, eles fazem vocês passarem através de alguma coisa pela qual jamais poderiam passar se só existissem tristezas. Eles nos solicitam a formar a idéia do que é comum ao corpo que afeta e ao corpo que é afetado. Isso pode fracassar, mas pode ter sucesso e tornar-me inteligente. Alguém que se torna bom em latim quando se apaixona... já se viu isso nos seminários. A que isso está ligado? Como alguém faz progressos? Jamais fazemos progressos sobre uma linha homogênea, é um truque aqui que nos faz progredir lá, como se uma pequena alegria tivesse disparado um gatilho. Novamente a necessidade de um mapa: o que aconteceu lá para que algo se desbloqueie aqui? Uma pequena alegria nos precipita num mundo de idéias concretas que varreu os afetos tristes ou está prestes a combatê-los, tudo isso faz parte da variação contínua. Mas ao mesmo tempo essa alegria nos propulsiona de alguma forma para fora da variação contínua, ela nos faz adquirir ao menos a potencialidade de uma noção comum. É preciso conceber isso muito concretamente, são truques muito localizados. Se você chegar a formar uma noção comum sobre em que ponto sua relação compõe com tal pessoa ou tal animal, você diz: enfim eu compreendi alguma coisa, sou menos estúpido do que ontem. O "eu entendi" que se diz é, por vezes, o momento em que você formou uma noção comum. Você a formou muito localmente, isso não deu a você todas as noções comuns. Spinoza não pensa de modo algum como um racionalista; para os racionalistas, existe o mundo da razão e existem as idéias; se você tem uma, evidentemente você tem todas: você é racional. Spinoza pensa que ser racional, ou ser sábio, é uma questão de devir, o que muda singularmente o conteúdo do conceito de razão. É preciso saber fazer os encontros que convém a vocês. Ninguém jamais poderá dizer que é bom para si algo que ultrapassa seu poder de ser afetado. O mais belo é viver nas bordas, no limite do seu próprio poder de ser afetado, à condição de que seja o limite alegre, pois há o limite de alegria e o limite de tristeza; mas tudo o que excede o seu poder de ser afetado é feio. Relativamente feio: o que é bom para as moscas não é forçosamente bom para você...
Não há mais noção abstrata, não há nenhuma fórmula que seja boa para o homem em geral. O que conta é qual é o seu próprio poder. Lawrence dizia (nos escritos póstumos) uma coisa diretamente spinozista: uma intensidade que ultrapassa o seu poder de ser afetado é má. É inevitável: ninguém me fará dizer que um azul intenso demais para os meus olhos é belo, talvez seja belo para outra pessoa. Mas existe o bom para todos, vocês me dirão... Sim, porque os poderes de ser afetado se compõe. Supondo-se que existisse um poder de ser afetado que definisse o poder de ser afetado do universo inteiro, é bem possível, já que todas as relações se compõe ao infinito: porém não em uma ordem qualquer. Minha relação não se compõe com a do arsênico, mas o que isso pode fazer? Para mim, evidentemente, faz muito, só que nesse momento as partes do meu corpo entram sob uma nova relação que se compõe com a do arsênico. É preciso saber em que ordem as relações se compõe. Ora, se soubéssemos em que ordem as relações de todo o universo se compõe, poderíamos definir um poder de ser afetado do universo inteiro, seria o cosmos, o mundo como corpo ou como alma. Nesse momento, você conheceria propriamente falando um poder de ser afetado universal: Deus, que é o universo inteiro enquanto causa, possui por natureza um poder de ser afetado universal. Inútil dizer que estamos prestes a fazer um uso original da idéia de Deus.
Você experimenta uma alegria, você sente que essa alegria concerne a você, que ela concerne a algo de importante quanto às suas relações principais, suas relações características. Então é preciso que você se sirva dela como um trampolim, que você forme a idéia-noção: em que o corpo que me afeta e o meu convém entre si? Em que a alma que me afeta e a minha convém entre si, do ponto de vista da composição de suas relações, e não mais do ponto de vista do acaso de seus encontros? Vocês fazem a operação inversa daquela que geralmente se faz. Geralmente as pessoas fazem o somatório de suas infelicidades, é de fato aí que a neurose começa, ou a depressão, quando alguém se mete a contabilizar: "Ah, merda, há isso, e aquilo..." Spinoza propõe o inverso: ao invés de fazer o somatório de nossas tristezas, tomar uma alegria como um ponto de partida local, à condição que sintamos que ela nos concerne verdadeiramente. Em cima disso forma-se a noção comum, em cima disso tenta-se ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para toda a vida. Tenta-se diminuir a porção respectiva de tristezas face à porção respectiva de uma alegria, e tenta-se o seguinte golpe formidável: estamos suficientemente assegurados quanto às noções comuns que remetem a relações de conveniência entre determinado corpo e o meu, e tentaremos então aplicar o mesmo método à tristeza, porém não se poderia fazê-lo a partir da tristeza, ou seja, tentaremos formar noções comuns pelas quais chegaremos a compreender de maneira vital em que determinado corpo e outro não convém entre si ao invés de convirem. Isso se torna não mais uma variação contínua, mas uma curva ascendente [courbe en cloche]. Vocês partem de paixões alegres, aumento da potência de agir, vocês se servem delas para formar noções comuns viventes, e vocês voltam a descer em direção à tristeza, desta vez com noções comuns que vocês formam para compreender em que determinado corpo não convém com o seu, em que determinada alma não convém com a sua. Nesse momento, vocês já podem dizer que estão na idéia adequada porque, com efeito, vocês entraram no conhecimento das causas. Vocês já podem dizer que estão na filosofia. A única coisa que conta são as maneiras de viver. A única coisa que conta é a meditação da vida, e a filosofia só pode ser uma meditação da vida; longe de ser uma meditação da morte, é a operação que consiste em fazer com que a morte só afete enfim a proporção relativamente menor de mim, a saber: vivê-la como um mau encontro. Simplesmente sabe-se muito bem que, à medida que um corpo se fatiga, as probabilidades de maus encontros aumentam. É uma noção comum, uma noção comum de inconveniência. Enquanto eu sou jovem, a morte é verdadeiramente alguma coisa que vem de fora, é verdadeiramente um acidente extrínseco, salvo em caso de doença interna. Não há noção comum, mas em troca é verdade que quando um corpo envelhece, sua potência de agir diminui: eu não posso mais fazer o que ontem eu ainda podia fazer; isso me fascina no envelhecimento, essa espécie de diminuição da potência de agir. O que é, vitalmente, um palhaço? É o tipo que, precisamente, não aceita o envelhecimento, não sabe envelhecer suficientemente rápido. Não que seja preciso envelhecer demasiadamente rápido, porque essa é também uma outra maneira de ser palhaço: fazer-se de velho. Quanto mais envelhecemos, menos temos vontade de fazer maus encontros, mas quando somos jovens lançamo-nos no risco do mau encontro. É fascinante o tipo que, à medida que sua potência de agir diminui em função do envelhecimento, seu poder de ser afetado se modifica, mas não ele, que continua querendo fazer-se de jovem. É muito triste. Há uma passagem fascinante num romance de Fitzgerald (o número do esqui aquático), dez páginas de imensa beleza sobre não saber envelhecer... Vocês sabem, os espetáculos que são constrangedores para os próprios espectadores.
Saber envelhecer é chegar ao momento em que as noções comuns devem fazê-los compreender em que as coisas e os outros corpos não convém com o seu. Então, inevitavelmente, será preciso encontrar uma nova graça que será a de sua idade, e sobretudo não apegar-se. É uma sabedoria. Não é a boa saúde que faz dizer “viva a vida!”, não é tampouco a vontade de apegar-se à vida. Spinoza soube morrer admiravelmente, mas ele sabia muito bem do que era capaz, ele sabia mandar à merda os outros filósofos. Leibniz pegava pedaços de seus manuscritos para depois dizer que eram dele. Existem histórias muito curiosas - Leibniz era um homem perigoso.
Eu vou terminar dizendo que nesse segundo nível se atinge a idéia-noção onde as relações se compõe, e mais uma vez, isso não é abstrato, pois eu tentei mostrar que era uma empresa extraordinariamente viva. Saímos das paixões. Conquistamos a posse formal da potência de agir. A formação das noções, que não são idéias abstratas, que são literalmente regras de vida, me dá a posse da potência de agir. As noções comuns são o segundo gênero de conhecimento. Para compreender o terceiro, é preciso já estar no segundo. No terceiro gênero, apenas Spinoza entrou. Acima das noções comuns... vocês notaram que se as noções comuns não são abstratas, elas são coletivas, elas remetem sempre a uma multiplicidade, mas elas não são menos individuais. Trata-se daquilo em que este e aquele corpo convém, no limite aquilo em que todos os corpos convém, porém nesse momento é o mundo inteiro que é uma individualidade. Portanto as noções comuns são sempre individuais.
Para além das composições de relações, das conveniências interiores que definem as noções comuns, existem as essências singulares. Quais são as diferenças? Seria preciso dizer, no limite, que a relação e as relações que me caracterizam exprimem minha essência singular, mas no entanto não se trata da mesma coisa. Por quê? Porque a relação que me caracteriza - o que eu digo aqui não está em absoluto no texto, mas pode-se dizer que está - porque as noções comuns ou a relação que me caracteriza concerne ainda as partes extensivas do meu corpo. Meu corpo é composto, ao infinito, de uma infinidade de partes extensas, e essas partes entram sob determinadas relações que correspondem à minha essência. As relações que me caracterizam correspondem à minha essência mas não se confundem com minha essência, pois as relações que me caracterizam são ainda regras sob as quais se associam, em movimento e em repouso, as partes extensas de meu corpo; ao passo que a essência singular é um grau de potência, ou seja, são meus limiares de intensidade. Entre o mais baixo e o mais alto, entre meu nascimento e minha morte, são meus limiares intensivos. O que Spinoza chama de essência singular, parece-me que é uma quantidade intensiva, como se cada um de nós fosse definido por uma espécie de complexo de intensidades que remetem à essência, e também por relações que regram as partes extensas, as partes extensivas. Desse modo, quando tenho o conhecimento das noções, ou seja, o conhecimento das relações de movimento e de repouso que regram a conveniência ou a inconveniência dos corpos do ponto de vista de suas partes extensas, do ponto de vista de sua extensão, eu ainda não estou plenamente de posse de minha essência enquanto intensidade.
E Deus, o que é? Quando Spinoza define Deus pela potência absolutamente infinita, ele se exprime bem. Todos os termos que ele emprega explicitamente: grau, grau em latim é “gradus”, e gradus remete a uma longa tradição na filosofia medieval. O gradus é a quantidade intensiva, em oposição ou à diferença das partes extensivas. Portanto seria preciso conceber que a essência singular de cada um seja essa espécie de intensidade, ou de limite de intensidade. Ela é singular porque, qualquer que seja nossa comunidade de gênero ou de espécie - por exemplo, todos nós somos homens - nenhum de nós tem limiares de intensidade iguais aos de outro.
O terceiro gênero de conhecimento, ou a descoberta da idéia de essência, se dá quando, a partir de noções comuns, por meio de um novo giro dramático [coup de théâtre], chega-se a entrar nessa terceira esfera do mundo: o mundo das essências. Aqui se conhece em sua correlação - de todo modo não se pode conhecer um sem o outro - o que Spinoza denomina como a essência singular que é a minha, a essência singular que é a de Deus e a essência singular das coisas exteriores.
Que esse terceiro gênero de conhecimento recorra, por um lado, a toda uma tradição da mística judaica, e por outro, implique uma espécie de experiência mística atéia, própria a Spinoza, creio que a única maneira de compreender esse terceiro gênero é compreender que, para além da ordem dos encontros e das misturas, existe esse outro estágio das noções que remete às relações características. Mas para além das relações características existe ainda o mundo das essências singulares. Então, quando formamos aqui idéias que são como puras intensidades, onde minha própria intensidade irá convir com a intensidade das coisas exteriores, nesse momento se dá o terceiro gênero porque, se é verdade que nem todos os corpos convém uns aos outros, se é verdade que, do ponto de vista das relações que regem as partes extensas de um corpo ou de uma alma, as partes extensivas, nem todos os corpos convém uns aos outros, todos eles serão concebidos como convenientes uns aos outros se vocês chegarem a um mundo de puras intensidades. Nesse momento, o amor que vocês têm por si mesmos é ao mesmo tempo, como diz Spinoza, o amor às outras coisas, é ao mesmo tempo o amor de Deus, é o amor que Deus tem por si mesmo, etc.
O que me interessa nesse limiar místico é esse mundo das intensidades. Aqui, vocês estão de posse dele, não somente formal, mas consumada. Já não é nem mesmo a alegria. Spinoza descobre a palavra mística "beatitude", ou afeto ativo, isto é, o auto-afeto. Mas isso continua sendo algo muito concreto. O terceiro gênero é um mundo de intensidades puras.
Tradução: Francisco Traverso Fuchs


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