26 de novembro de 1994

E de Enfance [Infância]

Claire Parnet: E de Enfance [Infância]. Lembranças distantes. Os primeiros anos de vida, a crise, a Frente Popular e a chegada da guerra. E de Enfance [Infância]. Você costuma dizer que começou sua vida na Av. Wagram, pois nasceu no 17º distrito de Paris. Depois, foi morar com sua mãe na R. Daubigny, no 17º distrito, e, agora, mora perto da Place Clichy, bairro mais pobre, também no 17º, R. de Bizerte. Como estará morto quando este filme for exibido, posso dar o seu endereço. Primeiro, quero saber se a sua família é o que chamamos de burguesa e de direita.

Gilles Deleuze: Eu sempre digo onde moro quando me fazem a pergunta. Houve de fato uma queda. Comecei por cima, pelo alto do 17°, um bairro muito bonito. E durante a minha infância, vivi a crise antes da guerra. Uma das lembranças que tenho da infância durante a crise era a quantidade de apartamentos vazios. As pessoas estavam sem dinheiro mesmo e havia apartamentos para alugar por toda a cidade. Meus pais tiveram de deixar o apartamento chique do alto do 17º, perto do Arco do Triunfo, e desceram, mas ainda era bom, perto do Boulevard Malesherbes. Era numa ruazinha, a R. Daubigny. Depois, quando eu voltei para Paris, já mais velho, fui para a fronteira do 17º distrito, que é mais proletário, na R. Nollet e R. Toussaint. Perto da casa onde morou Verlaine, que também não era rico. Foi mesmo uma queda. Dentro de alguns anos, não sei onde estarei. Mas não deve melhorar em nada.

CP: Em Saint-Quen, talvez?

GD: É, pode ser. Mas a minha família era uma família burguesa. Não era de direita, ou melhor era, sim, de esquerda é que não era. Preciso me situar, pois não tenho lembranças de infância. Não tenho lembranças porque a memória é uma faculdade que deve afastar o passado em vez de acioná-lo. É preciso muita memória para rejeitar o passado, porque não é um arquivo. Então, tenho esta lembrança: havia aquelas placas nos apartamentos onde estava escrito "Aluga-se". Eu vivi muito aquela crise.

CP: Que anos eram estes?

GD: Não lembro os anos. Não sei, devia ser entre... Entre 1930-1935. 1930... Não me lembro mais.

CP: Você tinha 10 anos.

GD: As pessoas não tinham dinheiro. Nasci em 1925. E me lembro da preocupação com o dinheiro. Foi o que me impediu de ir no colégio dos jesuítas, pois meus pais não tinham mais dinheiro. Eu estava destinado aos jesuítas e acabei no liceu por causa da crise. Mas o outro aspecto... Deixe-me ver... Havia outro aspecto da crise, mas não sei mais. Não sei mais, mas não importa. E então, houve a guerra. Quando digo que era uma família de direita... Eu me lembro muito bem, eles não se recuperaram e é por isso que entendo melhor alguns patrões de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisa inacreditável. Talvez muitos patrões não tenham vivido isso, mas deve restar alguns que conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos, pior do que Maio de 68. E me lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o sintoma. Todos eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O ódio que Mendès-France carregou nas costas não foi nada perto do que Blum carregou. Pois ele foi de fato o primeiro. A reação causada pelas férias remuneradas foi impressionante!

CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?

GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. Não é possível entender como Pétain tomou o poder daquela forma sem conhecer o nível de anti-semitismo da França e da burguesia francesa naquele momento. O ódio das medidas sociais tomadas pelo governo de Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era meio "Cruz de Fogo"... Isso era comum naquela época! Portanto, era uma família de direita inculta. Havia uma burguesia culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai era, como se costumava chamar, um homem muito distinto, afável, distinto e encantador. Eu ficava espantado com esta violência contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa. É um mundo fácil de ser entendido em geral, mas que não se pode imaginar em detalhes. Os combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o regime da crise, a própria crise... Que crise era essa que ninguém entendia?

CP: Qual era a profissão dele?

GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a lembrança de duas atividades dele. Não sei se foi criação dele ou se trabalhava com isso, mas era um produto para impermeabilizar os tetos. Impermeabilização dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com apenas um operário, um italiano. Ainda mais um estrangeiro... As coisas iam muito mal. O negócio acabou falindo e ele foi parar em uma indústria mais "séria" que fabricava balões. Aqueles balões... Aquelas coisas... As aeronaves. Entende, não é? Mas foi num momento em que não serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos céus de Paris para frear aviões alemães. Eram como pombos voadores. Quando os alemães se apoderaram da fábrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em fábrica de botes infláveis, que teriam mais serventia. Mas não fizeram balões, nem zepelins. Então, eu vi o nascimento da guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem das pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com Munique; um ano e alguns meses, mas a guerra estava aí. A guerra se sucedeu à crise. Era uma atmosfera muito tensa em que as pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terríveis. Quando os alemães chegaram de fato, devastaram a Bélgica, entraram na França e tudo o mais. Eu estava em Deauville, porque era o lugar em que meus pais sempre passavam as férias de verão. Eles já tinham voltado. Foram e nos deixaram lá, o que era impensável, pois tínhamos uma mãe que nunca havia nos deixado, etc...

Ficamos em uma pensão; nossa mãe tinha nos deixado com uma senhora que era a dona desta pensão. E eu fui à escola durante um ano em Deauville, em um hotel que foi transformado em liceu. E os alemães estavam chegando. Não, estou confundindo tudo. Isso foi no início da guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, há pouco, falei das férias remuneradas, eu me lembro que a chegada das férias remuneradas à praia de Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma obra-prima, pois era prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar pela primeira vez na vida e é esplêndido! Era uma menina da região de Limousin que estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma coisa inimaginável quando nunca se o viu, esta coisa é o mar. A gente pode imaginar que seja grandioso, infinito, mas tudo isso perde a força quando se vê o mar. Aquela menina ficou umas quatro ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e não se cansava de ver um espetáculo tão sublime, tão grandioso! Então, na praia de Deauville, que sempre tinha sido exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das férias remuneradas... Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantástico. Se o ódio entre as classes tem algum sentido são palavras como as que dizia a minha mãe — que, no entanto, era uma mulher fabulosa —, sobre a impossibilidade de se freqüentar uma praia em que havia gente como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca esqueceram. Maio de 68 não foi nada perto disso.

CP: Fale mais do medo que eles tinham.

GD: O medo é de que isso nunca fosse parar. Se davam férias remuneradas aos operários, todos os privilégios burgueses estavam ameaçados. Os locais freqüentados eram como questões de território. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de repente, voltássemos à era dos dinossauros. Era uma agressão. Pior do que os alemães. Pior do que os tanques alemães chegando na praia! Você entende? Era indescritível!

CP: Era gente de outro mundo.

GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo nas fábricas? Nunca esqueceram isso. Acho até que este medo é hereditário. Não quero dizer que Maio de 68 não foi nada. É outra história. Mas também não se esqueceram de 68. Enfim... Eu estava lá em Deauville sem meus pais, e com meu irmão. Quando os alemães realmente invadiram, foi aí que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medíocre na escola, não tinha interesse por nada, a não ser por uma coleção de selos, que era a minha maior atividade e eu era um péssimo aluno. Até que aconteceu comigo o que acontece com muita gente. As pessoas que despertam sempre o são por causa de alguém em algum momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem que me pareceu extraordinário porque falava muito bem. Para mim, foi um despertar absoluto. Eu tive a sorte de encontrar este cara que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro, porque ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, só que bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho do sociólogo. Naquela época, ele era muito jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto... Na minha lembrança, ele era alto. E ele só tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado. Não tinha nascido assim, mas era assim, como um cíclope. Tinha cabelos muito cacheados, como uma cabra... Aliás, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava verde, roxo, tinha uma saúde extremamente frágil, tanto que ele foi reformado no exército e colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma revelação. Ele era cheio de entusiasmo. Não sei mais em que ano eu estava, talvez 3º ou 4º ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que foi uma reviravolta para mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e lia muito bem. E nós nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me impressionava muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava para a praia de Deauville. E eu o seguia, colava nele, literalmente. Eu era seu discípulo. Tinha encontrado um mestre. Nós nos sentávamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantástico, ele me lia Les nourritures terrestres. Ele gritava, pois não havia ninguém na praia no inverno. Ele gritava: "Les nourritures terrestres", e eu estava sentado ao lado dele, com medo de alguém aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram os principais. Eram as suas grandes paixões. E eu fui transformado, absolutamente transformado. Mas logo começaram os comentários sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o menino que estava sempre atrás dele. Iam sempre juntos à praia, etc. A senhora que me hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsável por mim na falta de meus pais e que queria me alertar sobre certas relações. Eu não entendi nada. Não entendi, pois, se havia uma relação pura, incontestável e aberta, era justamente a nossa. Só depois, eu percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Então, eu disse a ele: "Estou chateado, pois a senhora que me hospeda disse..." Eu o chamava de "senhor" e ele me chamava de "você". "Ela disse que não devo vê-lo, que não é normal, nem correto". E ele me disse: "Não se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar com ela, explicar tudo e ela ficará tranqüila". Ele tinha me tornado esperto o bastante para me deixar em dúvidas. Eu não estava tranqüilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que a velha senhora não se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de lá rápido porque ele era alguém extremamente suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que os alemães chegaram. A guerra estava começando. Os alemães chegaram e meu irmão e eu saímos de bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A fábrica tinha se mudado para lá, fugindo-se dos alemães. Fomos de Deauville a Rochefort de bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso discurso infame de Pétain no albergue de uma aldeia. Meu irmão e eu estávamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem encontramos? Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o filho e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto de La Rochelle. Era o destino. Mas estou contando isso só para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs, eu o conheci bem melhor e não tinha mais admiração por ele. Mas isso me mostrou que foi no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razão.

CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, já que as férias haviam acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia. Foi nesta época que Merleau-Ponty era professor lá, mas você entrou numa turma em que não havia Merleau-Ponty. Seu professor chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, não?

GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrança comovida. Foi por acaso. Houve a distribuição dos alunos... Eu poderia ter tentado passar para a turma de Merleau-Ponty, mas não tentei, não sei por quê. Viale foi... É curioso, porque Halbwachs me fez sentir alguma coisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu soube que era isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela época. É bom lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensíveis às questões nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi anunciado Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17 anos... Não sei com que idade se passava a prova final. Talvez, 17, 18 anos ou 16, 17 anos.

CP: Normalmente, 18 anos.

GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava baixo, já era velho. Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty, tenho a lembrança da melancolia. Carnot era um grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E havia o olhar melancólico de Merleau-Ponty que observava as crianças brincando e gritando. Uma grande melancolia. Era como se ele dissesse: "O que estou fazendo aqui?" Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava no fim de sua carreira. Eu também me liguei muito a ele. Ficamos muito ligados e, como morávamos perto um do outro, voltávamos sempre juntos. Nós falávamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia ou não faria nada.

CP: Logo nas primeiras aulas?

GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas tão estranhas quanto o que chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito do que para outros a descoberta de um personagem de ficção. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugénie Grandet. Quando eu aprendi o que Platão chamava de "idéia", me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que era isso; que, para mim, era isso.

CP: E você logo se tornou bom aluno? O melhor?

GD: Sim. Aí, eu não tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs, tornei-me bom aluno! Era bom em Letras. Até mesmo em Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em Filosofia, um ótimo aluno.

CP: Queria que voltássemos a uma coisa. As turmas não eram politizadas naquela época? Você disse que a sua turma era especial, pois havia Guy Moquet, etc.

GD: Não era possível ser politizado durante a guerra. Certamente havia rapazes de 17, 18 anos que estavam na Resistência. Mas quem estava na Resistência se calava, a menos que fosse um cretino. Não se pode falar em politização. Havia pessoas indiferentes e as favoráveis ao governo de Vichy.

CP: Havia a Ação Francesa?

GD: Não era a Ação Francesa, era muito pior. Eram os "Vichyssois". Não há comparação com a politização em épocas de paz, já que os elementos realmente ativos eram os resistentes ou jovens com alguma relação com a Resistência. Não tinha nada a ver com politização; era mais secreto.

CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que simpatizavam com a Resistência?

GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo assassinado pelos nazistas um ano depois.

CP: Mas vocês falavam a esse respeito?

GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicação imediata de Oradour tinha a ver com comunicação secreta, com o telégrafo, pois a notícia se espalhou e, no mesmo dia, todas as escolas parisienses já sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi uma das coisas mais emocionantes para mim.

CP: Para fechar a infância, senão não terminamos nunca, a sua parece ter tido pouca importância para você. Você não fala dela e nem é uma referência. Temos a impressão de que a infância não é importante para você.

GD: Sim, claro. É quase em função de tudo o que acabo de dizer. Acho que a atividade de escrever não tem nada a ver com o problema pessoal de cada um. Não disse que não se deve investir toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever têm a ver com a vida. Mas a vida é algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do escritor é por natureza desagradável. É lamentável, pois o impede de ver, sempre o remete para seu pequeno caso particular. Minha infância nunca foi isso. Não é que eu tenha horror a ela! Mas o que me importa, na verdade, é como já dizíamos: "Há o devir-animal que envolve o homem e o devir-criança". Acho que escrever é um devir alguma coisa. Mas também não se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da vida passa em nós. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. É isso. Nós nos tornamos alguma coisa. Escrever é devir. É devir o que bem entender, menos escritor. É fazer tudo o que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando é arquivo. Mas ele tem interesse em relação a outra coisa. Se o arquivo existe é justamente porque há uma outra coisa. E, através do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra coisa. Mas a simples idéia de falar da minha infância — não só porque ela não tem interesse algum — me parece o contrário de toda a Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que já li mil vezes e que todos os escritores já disseram. Mas vi este livro ontem, eu não o conhecia. É de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.

CP: Ele tem um nome lindo, poderia dizê-lo.

GD: Sim, é Ossip. Nesta frase, ele diz... É o tipo de frase que me transtorna. E o papel do professor é este: comunicar e fazer com que crianças apreciem um texto. Foi o que Halbwachs fez por mim. Ele diz que não entende que alguém como Tolstoi se apaixone por arquivos familiares. Ele continua. "Eu repito: a minha memória não é amor, mas hostilidade. Ela trabalha não para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um intelectual de origem medíocre, a memória é inútil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está feita. Dentre as gerações felizes, onde a epopéia fala através de hexâmetros e crônicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o século, há um abismo, um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha família? Eu não sei. Era gaga de nascença e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus contemporâneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos não a falar, mas a balbuciar. Foi só quando demos ouvidos ao barulho crescente do século e fomos embranquecidos pela espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem". Para mim, isso quer dizer que... Quer dizer de fato que escrever é mostrar a vida. É testemunhar em favor da vida, dos idiotas que estão morrendo. É gaguejar na língua. Fazer literatura apelando para a infância é tornar a Literatura parte de seu caso particular. É fazer literatura barata, são os best-sellers. É realmente uma porcaria. Se não se leva a linguagem até o ponto em que se gagueja — o que não é fácil, pois não basta gaguejar assim — , se não se vai até este ponto. Na Literatura, de tanto forçar a linguagem até o limite, há um devir animal da própria linguagem e do escritor e também há um devir criança, mas que não é a infância dele. Ele se torna criança, mas não é a infância dele, nem de mais ninguém. É a infância do mundo. Os que se interessam pela sua própria infância que se danem e que continuem a fazer a Literatura que eles merecem. Se há alguém que não se interessa por sua própria infância, este alguém é Proust. A tarefa do escritor não é vasculhar os arquivos familiares, não é se interessar por sua própria infância. Ninguém se interessa por isso. Ninguém digno de alguma coisa se interessa por sua infância. A tarefa é outra: devir criança através do ato de escrever, ir em direção à infância do mundo e restaurar esta infância. Eis as tarefas da Literatura.

CP: E a criança nietzschiana?

GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia. Todos os escritores sabem disso. Mas eu insisto. Não consigo pensar em outra fórmula além desta: escrever é devir, mas não é tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso. Não é porque vivi uma história de amor que vou escrever um romance. É horrível pensar assim. Não é apenas medíocre, é horrível!

CP: Há uma exceção à regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa, escreveu um livro chamado Infância. Um momento de fraqueza?

GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute é uma escritora fabulosa, mas não é um livro sobre a infância dela. É um livro no qual ela testemunha, reinventa...

CP: Banquei o advogado do diabo.

GD: Eu sei, mas é um papel muito perigoso. Ela inventa a infância do mundo. O que interessa a N. Sarraute de sua infância? São algumas fórmulas estereotipadas das quais ela vai tirar maravilhas. Pode ser o que ela fez com as últimas palavras de ... De quem mesmo?

CP: Tchekov.

GD: As últimas palavras de Tchekov. Ela tirou daí. Depois, ela pega de novo uma menina que ouviu alguém dizer: "Como vai?" e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar a linguagem. Claro que Nathalie Sarraute não se interessa por sua própria infância!

CP: Tudo bem, mas mesmo assim...

GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, não.

CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um treinamento precoce que o levou à Literatura? Você reprimiu a infância e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a partir de que idade? É um treinamento? Por outro lado, a infância sempre volta, mesmo que seja de uma forma revoltante. É preciso treinar quase diariamente? Precisa ter uma disciplina cotidiana?

GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infância, a infância... Como tudo, é preciso saber separar a infância ruim da boa. O que é interessante? A relação com o pai, a mãe e as lembranças da infância não me parecem interessantes. É interessante e rico para si próprio, mas não para escrever. Há outros aspectos da infância. Falamos há pouco do cavalo que morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoção da criança... Na verdade, é "uma" criança. A criança que "eu" fui não quer dizer nada. Mas eu não sou apenas a criança que fui, eu fui "uma" criança entre muitas outras. Eu fui "uma criança qualquer". E foi assim que eu vi o que era interessante e não como "eu era a tal criança". "Eu vi um cavalo morrer na rua antes que surgissem os carros". Não estou falando por mim, mas por aqueles que viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. É uma tarefa do tornar-se escritor. Algum fator fez com que Dostoiévski o visse. Há uma página inteira em Crime e castigo, eu acho, sobre o cavalo que morre na rua. Nijinski, o dançarino, o viu. Nietzsche também viu. Já estava velho quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem!

CP: E você viu as manifestações da Frente Popular.

GD: Sim, eu vi estas manifestações, vi meu pai dividido entre sua honestidade e seu anti-semitismo. Eu fui "uma" criança. Eu sempre insisti no fato de que não se entende o sentido do artigo indefinido. "Uma" criança espancada, "um" cavalo chicoteado. Não quer dizer "eu". O artigo indefinido é de uma extrema riqueza.

CP: São as multiplicidades. Falaremos disso.

GD: Sim, é a multiplicidade.

25 de novembro de 1994

F de Fidelidade

Claire Parnet: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um mistério muito maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.

Gilles Deleuze: Vamos ao F.

CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já que há 30 anos, é amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como um casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie [Faure], a Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos são muito importantes para você. François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os homenageou como amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impressão de a fidelidade estar obrigatoriamente ligada à amizade é correta? Ou será o contrário?

GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa com F.

CP: Sim, e o A já foi preenchido.

GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer "ter coisas em comum com alguém"? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar. Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma pré-linguagem em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do que dizem, mesmo coisas simples como: "Passe-me o sal". Não consigo entender. E há pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar, mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta. Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma frase deste nível, pensa: "O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?" Não pense que pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.

CP: Decifrar signos.

GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e a gente os recebe ou não. Acho que todas as amizades têm esta base: ser sensível aos signos emitidos por alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas... A amizade é cômica.

CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como Bouvard e Pecuchet, Mercier e Camier...

GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de Mercier e Camier. Eu estou sempre cansado, não tenho boa saúde, Jean-Pierre é hipocondríaco e nossas conversas são do tipo de Mercier e Camier. Um diz ao outro: "Como está?" O outro responde: "Uma bela viola, sem muito bolor". É uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou: "Estou como uma rolha no balanço do mar". São boas frases. Com Félix é diferente, não somos Mercier e Camier, estamos mais próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que fizemos juntos, mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas como: "Temos a mesma marca de chapéu!" E volta a tentativa enciclopédica, a de fazer um livro que aborde todos os saberes. Com outro amigo, poderia ser uma réplica de o Gordo e o Magro. Não é que se deva imitar estas grandes duplas, mas amizade é isso. Os grandes amigos são Bouvard e Pécuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes tenham brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso diz respeito direto à Filosofia. Porque na palavra "filosofia" existe a palavra "amigo". Quero dizer que o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o "amigo da sabedoria". O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha idéia de "amigo da sabedoria". Afinal, o que quer dizer "amigo da sabedoria"? Esse é que é o problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: "Ele tende à sabedoria". Não é por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? Há alguma relação com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer "amigo de"? Se interpretamos "amigo" como aquele que "tende a", amigo é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio. Mas o que quer dizer "pretender ser sábio"? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único pretendente. Se há um pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários pretendentes.

CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um pretendente.

GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos inventaram? Na minha opinião, na civilização grega, eles inventaram o fenômeno dos pretendentes. Quer dizer que eles inventaram a idéia de que havia uma rivalidade entre os homens livres em todas as áreas. Não havia esta idéia de rivalidade entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É por isso que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens livres. Então, eles se processam mutuamente, os amigos também. O rapaz ou a moça tem pretendentes. Os pretendentes de Penélope. Este é o fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno grego é a rivalidade dos homens livres. Isso explica "amigo" na Filosofia. Eles pretendem, há uma rivalidade em direção a alguma coisa. A quê? Podemos interpretar, tendo em vista a história da Filosofia. Para alguns, a Filosofia está ligada ao mistério da amizade. Para outros, está ligada ao mistério do noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues [O noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto, sem o primeiro amor. Mas como já dissemos, o primeiro amor é a repetição do último, talvez seja o último amor. Talvez o casal tenha uma importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que é a Filosofia quando forem resolvidas as questões da noiva, do amigo, do que é o amigo, etc... É isso que me parece interessante.

CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de...

GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação à Filosofia, dão importância à amizade. Mas num sentido muito especial. Eles não dizem que é preciso ter um amigo para ser filósofo; eles consideram que a amizade é uma categoria ou uma condição do exercício do pensamento. É isso que importa. Não é o amigo em si, mas a amizade como categoria, como condição para pensar. Daí, a relação Mascolo-Antelme, por exemplo. Daí, as declarações de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idéia de que... Eu adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do amigo. Há uma hora em que se deve desconfiar até de um amigo. Eu desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer que façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e comunhão entre meus amigos. Com a noiva é a mesma coisa. Com tudo. Mão não se deve achar que sejam acontecimentos ou casos particulares. Quando se fala de "amizade", "noiva perdida", trata-se de saber em que condições o pensamento pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a amizade é zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se pensar na amizade. Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta é a condição do pensamento.

CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com Châtelet, foi outra coisa. Mas você foi amigo de Foucault no final da guerra e estudaram juntos. Mas vocês tinham uma amizade que não era a de uma dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou Félix ou com Elie, Jerôme, já que estamos falando dos outros. Vocês tinham uma amizade muito profunda, mas parecia distante e era mais formal para quem via de fora. Que amizade era essa, então?

GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente tivesse se conhecido tarde. Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de nós é apenas uma pessoa. Era como se outro ar entrasse. Era uma corrente de ar especial. E as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação. Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia há pouco, sobre não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos de coisas que nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: "O que vai nos fazer rir hoje?". "O que nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?" É isso. Mas para mim, Foucault é a lembrança de alguém que ilustra o que eu dizia sobre o charme de alguém, um gesto... Os gestos de Foucault eram impressionantes. Tantos gestos... Pareciam gestos metálicos, gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas só têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la. Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a fonte de seu charme.

Ao G, pois!

24 de novembro de 1994

G de Gauche [Esquerda]

Claire Parnet: G! Neste caso, não é o ponto de demência que constitui seu charme e sim algo muito sério: o fato de pertencer à esquerda. Isso o faz rir, o que me deixa muito feliz. Como já vimos, você é de uma família burguesa de direita e, a partir do final da guerra, você se tornou o que se costuma chamar de um homem de esquerda. Com a Liberação, muitos amigos seus e estudantes de Filosofia aderiram ou eram muito ligados ao Partido Comunista.

Gilles Deleuze: Sim, todos passaram pelo PC, menos eu. Pelo menos é o que eu acho, não tenho certeza.

CP: Mas como você escapou disso?

GD: Não é nada complicado. Todos os meus amigos passaram pelo PC. O que me impediu? Acho que é porque eu era muito trabalhador. E porque eu não gostava das reuniões. Nunca suportei as reuniões em que falam de forma interminável. Ser membro do PC era participar destas reuniões o tempo todo. E era a época do "Apelo de Estocolmo". Pessoas cheias de talento passavam o dia colhendo assinaturas para o "Apelo de Estocolmo". Andavam pelas ruas com este "Apelo de Estocolmo", que já nem sei mais o que era. Mas isso ocupou toda uma geração de comunistas. Eu tinha problemas porque conhecia muitos historiadores comunistas cheios de talento e achava que se eles fizessem a tese deles seria muito mais importante para o partido, que, pelo menos, teria um trabalho a mostrar em vez de usá-los para o "Apelo de Estocolmo", um abaixo-assinado sobre a paz ou sei lá o quê. Não tinha vontade de participar disso. E, como eu falava pouco e era tímido, pedir uma assinatura para o "Apelo de Estocolmo" teria me colocado num estado de pânico tal que ninguém assinaria nada. Ainda por cima, tinha-se de vender o jornal L'Humanité. Tudo por motivos muito baixos. Não tive vontade nenhuma de entrar para o partido.

CP: Sentia-se próximo do engajamento deles?

GD: Do partido? Não, isso não me dizia respeito. E foi o que me salvou. Todas aquelas discussões sobre Stalin... O que hoje todo mundo já sabe sobre os horrores de Stalin, sempre existiu. Que as revoluções acabem mal... Acho muita graça! Afinal, de quem estão zombando? Quando os Novos Filósofos descobriram que as revoluções acabam mal... Tem de ser maluco! Descobriram isso com Stalin! Foi uma porta aberta para que todo mundo descobrisse. Por exemplo, sobre a revolução argelina disseram que ela fracassou porque atiraram em estudantes. Mas quem pode acreditar que uma revolução possa ser bem-sucedida? Dizem que os ingleses nunca fizeram uma revolução. Estão enganados! Atualmente, vive-se uma mistificação incrível! Os ingleses fizeram uma revolução, mataram o rei e o que eles tiveram? Cromwell! E o que é o romantismo inglês? Uma longa meditação sobre o fracasso da revolução. Eles não esperaram Glucksman para pensar sobre o fracasso da revolução stalinista. Eles o tinham ali! E os americanos, dos quais nunca se fala? Eles fracassaram em sua revolução muito mais do que os bolcheviques! Os americanos, antes da Guerra da Independência... Eu repito: antes da Guerra da Independência, eles se apresentavam como melhores do que uma nova nação! Eles ultrapassaram as nações, exatamente como Marx disse do proletário. Acabaram-se as nações! Eles trouxeram a nova população, fizeram a verdadeira revolução, e, exatamente como os marxistas contaram com a proletarização universal, os americanos contavam com a imigração universal. São as duas fases das lutas de classe. É absolutamente revolucionário! É a América de Jefferson, de Thoreau, de Melville! Jefferson, Thoreau, Melville representam uma América completamente revolucionária, que anuncia o novo homem, exatamente como a revolução bolchevique anunciava o novo homem! E ela fracassou! Todas as revoluções fracassaram, isso é sabido! Hoje, fingem redescobrir isso. É loucura! E nisso todo mundo se atola; é o revisionismo atual. Furet descobre que a revolução francesa não foi tão boa assim. Ela também fracassou e todos sabem disso! A revolução francesa nos deu Napoleão. São descobertas que não comovem por sua novidade. A revolução inglesa deu em Cromwell. A revolução americana deu em quê? Muito pior, não?

CP: O liberalismo.

GD: Deu em Reagan! Não me parece muito melhor do que os outros! Atualmente, estamos em um estado de grande confusão. Mesmo que as revoluções tenham fracassado, isso não impediu que as pessoas deviessem revolucionárias. Duas coisas absolutamente diferentes são misturadas. Há situações nas quais a única saída para o homem é devir revolucionário. É o que falávamos sobre a confusão do devir e da História. É essa a confusão dos historiadores. Eles nos falam do futuro da revolução ou das revoluções. Mas esta não é a questão. Eles podem ir lá para trás para mostrar que se o futuro é ruim é porque o ruim já existia desde o início. Mas o problema concreto é: como e por que as pessoas devêm revolucionárias? Felizmente, os historiadores não puderam impedir isso. Os sul-africanos estão envolvidos em um devir revolucionário. Os palestinos também. Se me disserem depois: "Você vai ver quando eles triunfarem, quando eles vencerem...!" "Vai acabar mal". Mas já não são mais os mesmos tipos de problemas, vai se criar uma nova situação e novos devires revolucionários serão desencadeados. Nas situações de tirania, de opressão, cabe aos homens devirem revolucionários, pois não há outra coisa a ser feita. Quando nos dizem: "Viu como deu errado?", não estamos falando da mesma coisa. É como se falássemos idiomas completamente diferentes. O futuro da História e o devir das pessoas não são a mesma coisa.

CP: E o respeito aos Direitos Humanos que está tão em voga hoje em dia? É o contrário do devir revolucionário, não?

GD: A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias. Isso tudo faz parte deste pensamento molenga daquele período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer "Direitos Humanos"? É totalmente vazio. É exatamente o que estava tentando dizer há pouco sobre o desejo. O desejo não consiste em erguer um objeto e dizer: "Eu desejo isto". Não se deseja a liberdade. Isso não tem valor algum. Existem determinadas situações como, por exemplo, a da Armênia. É um exemplo bem diferente. Qual é a situação por lá? Corrijam-me se estiver errado, mas não mudará muita coisa. Há este enclave em outra república soviética, este enclave armênio. Uma República Armênia. Esta é a situação. Primeira coisa. Há o massacre. Aqueles turcos ou sei lá o quê...

CP: Os Azeris.

GD: Pelo que se sabe atualmente, suponho que seja isso: o massacre dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua República. Corrija-me se estiver errado. E aí, ocorre um terremoto. Parece uma história do Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios homens e, mal chegam a um local protegido, é a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me falar de Direitos Humanos. É conversa para intelectuais odiosos, intelectuais sem idéia. Notem que essas Declarações dos Direitos Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de um problema de Direitos Humanos. Qual é o problema? Eis um caso de agenciamento. O desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para eliminar este enclave ou para que se possa viver neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada a ver com Direitos Humanos, e sim com organização de território. Suponho que Gorbatchev tente safar-se desta situação. Como ele vai fazer para que este enclave armênio não seja entregue aos turcos que o cercam? Não é uma questão de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim de jurisprudência. Todas as abominações que o homem sofreu são casos e não desmentidos de direitos abstratos. São casos abomináveis. Pode haver casos que se assemelhem, mas é uma questão de jurisprudência. O problema armênio é um problema típico de jurisprudência extraordinariamente complexo. O que fazer para salvar os armênios e para que eles próprios se salvem desta situação louca em que, ainda por cima, ocorre um terremoto? Terremoto este que também tem seus motivos: construções precárias, feitas de forma incorreta. Todos são casos de jurisprudência. Agir pela liberdade e tornar-se revolucionário é operar na área da jurisprudência! A justiça não existe! Direitos Humanos não existem! O que importa é a jurisprudência. Esta é a invenção do Direito. Aqueles que se contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns débeis mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de inventar as jurisprudências em que, para cada caso, tal coisa não será mais possível. É muito diferente. Vou dar um exemplo de que gosto muito, pois é o único meio de fazer com que se entenda o que é a jurisprudência. As pessoas não entendem nada! Nem todas... Eu me lembro da época em que foi proibido fumar nos táxis. Antes, se fumava nos táxis. Até que foi proibido. Os primeiros motoristas de táxi que proibiram que se fumasse no carro causaram um escândalo, pois havia motoristas fumantes. Eles reclamaram. E um advogado... Eu sempre fui um apaixonado pela jurisprudência. Se não tivesse feito Filosofia, teria feito Direito. Mas não Direitos Humanos. Teria feito jurisprudência, porque é a vida! Não há Direitos Humanos, há direitos da vida. Muitas vezes, a vida se vê caso a caso. Mas eu estava falando dos táxis. Um sujeito não queria ser proibido de fumar em um táxi e processa os táxis. Eu me lembro bem, pois li os considerandos do julgamento. O táxi foi condenado. Hoje em dia, nem pensar! Diante do mesmo processo, o cara é que seria condenado. Mas, no início, o táxi foi condenado sob o seguinte considerando: quando alguém pega um táxi, ele se torna locatário. O usuário do táxi é comparado a um locatário que tem o direito de fumar em sua casa, direito de uso e abuso. É como se eu alugasse um apartamento e a proprietária me proibisse de fumar em minha casa. Se sou locatário, posso fumar em casa. O táxi foi assimilado a uma casa sobre rodas da qual o passageiro era o locatário. Dez anos depois, isso se universalizou. Quase não há táxi em que se possa fumar. O táxi não é mais assimilado a uma locação de apartamento, e sim a um serviço público. Em um serviço público, pode-se proibir de fumar. A Lei Veil. Tudo isso é jurisprudência. Não se trata de direito disso ou daquilo, mas de situações que evoluem. E lutar pela liberdade é realmente fazer jurisprudência. O exemplo da Armênia me parece típico. Os Direitos Humanos... Ao invocá-los, quer dizer que os turcos não têm o direito de massacrar os armênios. Sim, não podem. E aí? O que se faz com esta constatação? São um bando de retardados. Ou devem ser um bando de hipócritas. Este pensamento dos Direitos Humanos é filosoficamente nulo. A criação do Direito não são os Direitos Humanos. A única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto, é lutar pela jurisprudência.

CP: Quero voltar a uma coisa...

GD: Ser de esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito. Criar o direito.

CP: Voltamos à pergunta sobre a filosofia dos Direitos Humanos. Este respeito pelos Direitos Humanos é uma negação de Maio de 1968 e uma negação do Marxismo. Você não repudiou Marx, pois não foi comunista e ainda o tem como referência. E você foi uma das raras pessoas a evocar Maio de 68 sem dizer que foi uma mera bagunça. O mundo mudou. Gostaria que falasse mais sobre Maio de 68.

GD: Sim! Mas foi dura ao dizer que fui um dos raros, pois há muita gente. Basta olhar à nossa volta, entre nossos amigos, ninguém renegou 68.

CP: Sim, mas são nossos amigos.

GD: Mesmo assim, há muita gente. São muitos os que não rejeitaram Maio de 68. Mas a resposta é simples. Maio de 68 é a intrusão do devir. Quiseram atribuir este fato ao reino do imaginário. Não é nada imaginário, é uma baforada de realidade em seu estado mais puro. De repente, chega a realidade. E as pessoas não entenderam e perguntavam: "O que é isso?" Finalmente, gente real. As pessoas em sua realidade. Foi prodigioso! O que eram as pessoas em sua realidade? Era o devir. Podia haver alguns devires ruins. É claro que alguns historiadores não entenderam bem, pois acredito tanto na diferença entre História e devir. Foi um devir revolucionário, sem futuro de revolução. Alguns podem zombar disso. Ou zombam depois que passou. O que tomou as pessoas foram fenômenos de puro devir. Mesmo os devires-animal, mesmo os devires-criança, mesmo os devires-mulher dos homens, mesmo os devires-homem das mulheres... Tudo isso faz parte de uma área tão particular na qual estamos desde o início de nossas questões. O que é exatamente um devir? É a intrusão do devir em Maio de 1968.

CP: Você teve um devir-revolucionário naquele momento?

GD: O seu sorriso parece mostrar bem a sua ironia... Prefiro que me pergunte o que é ser de esquerda. É mais discreto do que devir-revolucionário.

CP: Então, vou perguntar de outra forma. Entre seu civismo de homem de esquerda e seu devir-revolucionário, como você faz? O que é ser de esquerda para você?

GD: Vou lhe dizer. Acho que não existe governo de esquerda. Não se espantem com isso. O governo francês, que deveria ser de esquerda, não é um governo de esquerda. Não é que não existam diferenças nos governos. O que pode existir é um governo favorável a algumas exigências da esquerda. Mas não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. A questão de percepção é a seguinte: o que é não ser de esquerda? Não ser de esquerda é como um endereço postal. Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois a cidade, o país, os outros países e, assim, cada vez mais longe. Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, em que se vive em um país rico, costuma-se pensar em como fazer para que esta situação perdure. Sabe-se que há perigos, que isso não vai durar e que é muita loucura. Como fazer para que isso dure? As pessoas pensam: "Os chineses estão longe, mas como fazer para que a Europa dure ainda mais?" E ser de esquerda é o contrário. É perceber... Dizem que os japoneses percebem assim. Não vêem como nós. Percebem de outra forma. Primeiro, eles percebem o contorno. Começam pelo mundo, depois, o continente... europeu, por exemplo... depois a França, até chegarmos à Rue de Bizerte e a mim. É um fenômeno de percepção. Primeiro, percebe-se o horizonte.

CP: Mas os japoneses não são um povo de esquerda...

GD: Mas isso não importa. Estão à esquerda em seu endereço postal. Estão à esquerda. Primeiro, vê-se o horizonte e sabe-se que não pode durar, não é possível que milhares de pessoas morram de fome. Isso não pode mais durar. Não é possível esta injustiça absoluta. Não em nome da moral, mas em nome da própria percepção. Ser de esquerda é começar pela ponta. Começar pela ponta e considerar que estes problemas devem ser resolvidos. Não é simplesmente achar que a natalidade deve ser reduzida, pois é uma maneira de preservar os privilégios europeus. Deve-se encontrar os arranjos, os agenciamentos mundiais que farão com que o Terceiro Mundo... Ser de esquerda é saber que os problemas do Terceiro Mundo estão mais próximos de nós do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. Não parar de devir-minoritário. A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe - até quando se vota, não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa - a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. Ezra Pound e Joyce disseram coisas assim. O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que a maioria nunca é ninguém. É um padrão vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que há? Há todos os devires que são minoria. As mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm um devir mulher, os homens também o têm. Falamos do devir-animal. As crianças também têm um devir-criança. Não são crianças por natureza. Todos os devires são minoritários.

CP: Só os homens não têm devir homem.

GD: Não, pois é um padrão majoritário. É vazio. O homem macho, adulto não tem devir. Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições. Mas são coisas bem conhecidas.

23 de novembro de 1994

H de História da Filosofia

Claire Parnet: H de História da Filosofia. Costumam dizer que, em sua obra, há uma 1ª etapa dedicada à História da Filosofia. A partir de 1952, escreveu um estudo sobre David Hume. Depois, seguiram-se livros sobre Nietzsche, Kant, Bergson e Spinoza. Quem não o conhecia bem, ficou muito impressionado com Lógica do sentido, Diferença e repetição, O anti-Édipo, Mil platôs. Como se houvesse um Mr. Hyde adormecido no Dr. Jekyll. Quando todos explicavam Marx, você mergulhou em Nietzsche, e quando todos liam Reich, você se voltou para Spinoza, com a famosa pergunta: "O que pode um corpo?". Hoje, em 1988, você volta a Leibniz. Do que gostava ou ainda gosta na História da Filosofia?

Gilles Deleuze: É complicado. Porque isso envolve a própria Filosofia. Suponho que muita gente ache que a Filosofia é uma coisa muito abstrata e só para os "entendidos". Tenho tão viva em mim a idéia de que a Filosofia não tem nada a ver com "entendidos", de que não é uma especialidade, ou o é, mas só na medida em que a pintura ou a música também o são, que procuro ver esta questão de outra forma. Quando acham que a Filosofia é abstrata, a história da Filosofia passa a ser abstrata em dobro, já que ela nem consiste mais em falar de idéias abstratas, mas em formar idéias abstratas a partir de idéias abstratas. Para mim, a história da Filosofia é uma coisa muito diferente. E, para isso, volto a falar da pintura. Nas cartas de Van Gogh, encontram-se discussões sobre retrato ou paisagem. "Quero fazer retratos. Será preciso voltar ao retrato?" Eles davam muita importância em suas conversas e cartas. Retrato e paisagem não são a mesma coisa, não são o mesmo problema. Para mim, a história da Filosofia é, como na Pintura, uma espécie de arte do retrato. Faz-se o retrato de um filósofo. Mas é o retrato filosófico de um filósofo, uma espécie de retrato mediúnico, ou seja, um retrato mental, espiritual. É um retrato espiritual. Tanto que é uma atividade que faz totalmente parte da própria Filosofia, assim como o retrato faz parte da Pintura. O simples fato de eu invocar pintores que me levam a... Se eu ainda volto a pintores como Van Gogh ou Gauguin, é porque há uma coisa que me toca profundamente neles: é esta espécie de enorme respeito, de medo e pânico... Não só respeito, mas medo e pânico diante da cor, diante de ter de abordar a cor. É particularmente agradável que estes pintores que citei, para citar apenas estes, sejam dois dos maiores coloristas que já existiram. Ao revermos a história de suas obras, para eles, a abordagem da cor se fazia com tremores. Eles tinham medo! A cada começo de uma obra deles, usavam cores mortas. Cores... Sim, cores de terra, sem nenhum brilho. Por quê? Porque tinham o gosto e não ousavam abordar a cor. O que há de mais comovente do que isso? Na verdade, eles não se consideravam ainda dignos, não se consideravam capazes de abordar a cor, ou seja, de fazer pintura de fato. Foram necessários anos e anos para que eles ousassem abordar a cor. Mas quando sentem que são capazes de abordar a cor, obtêm o resultado que todos conhecem. Quando vemos a que eles chegaram, temos de pensar neste imenso respeito, nesta imensa lentidão para abordar isto. A cor para um pintor é algo que pode levar à insensatez, à loucura. Portanto, são necessários muitos anos, antes de ousar tocar em algo assim. Não é que eu seja particularmente modesto, mas eu acho que seria muito chocante se existissem filósofos que dissessem assim: "Vou ingressar na Filosofia, e vou fazer a minha filosofia. Tenho a minha filosofia". São falas de um retardado! "Fazer a sua filosofia!" Porque a Filosofia é como a cor. Antes de entrar na Filosofia, é preciso tanta, mas tanta precaução! Antes de conquistar a "cor" filosófica, que é o conceito. Antes de saber e de conseguir criar conceitos é preciso tanto trabalho! Eu acho que a história da Filosofia é esta lenta modéstia, é preciso fazer retratos por muito tempo. Tem de fazer retratos. É como se um romancista dissesse: "Eu escrevo romances, mas, para não comprometer a minha inspiração, eu nunca leio romances. Dostoiévski? Não conheço". Já ouvi um jovem romancista dizer essas coisas espantosas. Seria como dizer que não é preciso trabalhar. Como em tudo que se faz é preciso trabalhar muito, antes de abordar alguma coisa. Acho que a Filosofia tem um papel que não é apenas preparatório, mas que vale por si mesmo. É a arte do retrato na medida em que nos permite abordar alguma coisa. E aí é que vem o mistério. É preciso explicar melhor. Você teria de me obrigar a explicar através de alguma pergunta. Ou eu posso continuar assim... O que acontece quando se faz história da Filosofia? Tem outra coisa a me perguntar a este respeito?

CP: Sabemos qual é a utilidade da história da Filosofia para você. Mas, para as pessoas de modo geral? Já que você não quer falar da especialização da Filosofia e que a Filosofia se dirige também aos não-filósofos.

GD: Isso me parece muito simples. Só se pode entender o que é a filosofia, a que ponto ela não é uma coisa abstrata, da mesma forma que um quadro ou uma obra musical não são absolutamente abstratos, só através da história da Filosofia, com a condição de concebê-la corretamente. Afinal, o que é... Há uma coisa que me parece certa: um filósofo não é uma pessoa que contempla e também não é alguém que reflete. Um filósofo é alguém que cria. Só que ele cria um tipo de coisa muito especial, ele cria conceitos. Os conceitos não nascem prontos, não andam pelo céu, não são estrelas, não são contemplados. É preciso criá-los, fabricá-los. Haveria mil perguntas só neste ponto. Estamos perdidos, pois são tantas questões. Para que serve? Por que criar conceitos? O que é um conceito? Mas vamos deixar isso para lá por enquanto. Por exemplo, se eu criar um livro sobre Platão. As pessoas sabem que Platão criou um conceito que não existia antes dele e que é geralmente traduzido como a "Idéia". Idéia com um I maiúsculo. E o que Platão chama de Idéia é bem diferente do que outro filósofo chama de Idéia. É um conceito platônico, tanto que se alguém emprega a palavra Idéia em um sentido parecido, responderão: "É um filósofo platônico". Mas concretamente o que é? Não se deve perguntar de outra forma, ou é melhor não fazer Filosofia. Tem de se perguntar como se se tratasse de um cachorro! O que é uma Idéia? Eu posso definir um cachorro. E uma Idéia para Platão? Neste momento, já estou fazendo história da Filosofia. Eu tentarei explicar às pessoas, é essa a tarefa de um professor... Acho que o que ele chama de "Idéia" é uma coisa que não seria outra coisa. Ou seja, que seria apenas o que ela é. Isso também pode parecer abstrato. Há pouco, dizia que não se deve ser abstrato. E algo que só é o que ele é, é abstrato. Então, vamos pegar um caso que não seja de Platão. Uma mãe. Uma mamãe. É uma mãe, mas ela não é apenas uma mãe. Por exemplo, ela é esposa e ela também é filha de uma mãe. Suponhamos uma mãe que seja apenas mãe. Pouco importa se isso existe ou não. Por exemplo, será que a Virgem Maria, que Platão não conhecia, era uma mãe que só era mãe? Mas pouco importa se isso existe ou não? Uma mãe que não seria outra coisa além de mãe, que não seria filha de outra mãe, é isso que devemos chamar de "idéia de mãe". Uma coisa que é só o que ela é. É o que Platão quis dizer quando disse: "Só a Justiça é justa". Porque só a Justiça não é outra coisa além de justa. A gente vê que, no fundo, é muito simples. Claro que Platão não parou só nisso, mas seu ponto de partida foi: "Suponham-se tais entidades que sejam apenas o que elas são, iremos chamá-las de Idéias". Portanto, ele criou um verdadeiro conceito, este conceito não existia antes. A idéia da coisa pura. É a pureza que define a idéia. Mas por que isso parece abstrato? Por quê? Se nos entregamos à leitura de Platão é por aí que tudo se torna tão concreto! Ele não diz isso por acaso, não criou este conceito de Idéia por acaso. Ele se encontra em uma determinada situação em que, aconteça o que acontecer, em uma situação muito concreta, o que quer que aconteça ou o que quer que seja dado, há pretendentes. Há pessoas que dizem: "Para tal coisa, eu sou o melhor". Por exemplo, ele dá uma definição do político. E ele diz: "A primeira definição do político, como ponto de partida, seria o pastor dos homens". É aquele que cuida dos homens. Mas aí, chega um monte de gente dizendo: "Então, eu sou o político. Eu sou o pastor dos homens". Ou seja, o comerciante pode ter dito isso, o pastor que alimenta, o médico que trata, todos eles podem dizer: "Eu sou o verdadeiro pastor". Em outras palavras, há rivais. Agora, está começando a ficar mais concreto. Eu digo: um filósofo cria conceitos. Por exemplo, a Idéia, a coisa enquanto pura. O leitor não entende bem do que se trata, nem a necessidade de criar um conceito assim. Mas se ele continua ou reflete sobre a leitura, ele percebe que é pelo seguinte motivo: há uma série de rivais que pretendem esta coisa, são pretendentes e que o problema platoniano não tem nada a ver com o que é a Idéia, — do contrário, seria abstrato — mas é como selecionar os pretendentes, como descobrir em meio aos pretendentes qual deles é o bom. E é a Idéia, a coisa em seu estado puro, que permitirá esta seleção e selecionará aquele que mais se aproxima. Isso nos permite avançar um pouco, pois eu diria que todo conceito — por exemplo, o de Idéia — remete a um problema. Neste caso, o problema é como selecionar os pretendentes. Quando se faz Filosofia de forma abstrata, nem se percebe o problema. Mas quando se atinge o problema, por que ele não é dito pelo filósofo? Ele está bem presente em sua obra, está escancarado, de certa forma. Não se pode fazer tudo de uma vez. O filósofo já expôs os conceitos que está criando. Ele não pode, além disso, expor os problemas que os seus conceitos... ou, pelo menos, só se podem encontrar estes problemas através dos conceitos que criou. E se não encontrou o problema ao qual responde um conceito, tudo é abstrato. Se encontrou o problema, tudo vira concreto. É por isso que, em Platão, há constantemente estes pretendentes, estes rivais! Está ficando cada vez mais óbvio. Por que é que isso ocorre na cidade grega? Por que é que foi Platão quem inventou este problema? O problema é como selecionar os pretendentes e o conceito... a filosofia é isso: problema e conceito. O conceito é a Idéia, que deveria dar os meios para selecionar os pretendentes. Não importa como. Por que este problema, este conceito, se formou em um meio grego?

É que isso começa com os gregos, é um problema tipicamente grego, é problema da cidade, e da cidade democrática, mesmo se Platão não aceita isso. É um problema da cidade democrática. É em uma cidade democrática que, por exemplo, uma magistratura é objeto de pretensões. Há pretendentes, pretendo determinada função. Em uma formação imperial, como há, na época grega, em uma formação imperial, há funcionários nomeados pelo grande imperador. Não há essa rivalidade. A cidade ateniense é uma rivalidade dos pretendentes. Já com Ulisses, os pretendentes de Penélope. Há todo um meio que se pode chamar de "problema grego". É uma civilização... onde o enfrentamento dos rivais aparece sempre, por isso eles inventam a ginástica, inventam os Jogos Olímpicos. Inventam, são processualistas, ninguém é tão processualista quanto um grego, mas o procedimento é a mesma coisa, os processos são os pretendentes. Entende? A filosofia... Haverá também pretendentes, a luta de Platão contra os sofistas. Segundo ele, os sofistas são pretendentes a algo a que não têm direito. O que vai definir o direito ou o não-direito de um pretendente? É um problema muito... é tão divertido quanto um romance. Conhecemos grandes romances onde há pretendentes que se enfrentam diante de um tribunal. É outra coisa. Mas, na filosofia, há os dois: a criação de um conceito e esta criação se faz em função de um problema. Se não se achou o problema, não se compreende a filosofia, e ela permanece abstrata. Dou um exemplo, as pessoas, em geral, não vêem a que problema isso responde. Não vêem os problemas, pois eles são um pouco ditos, um pouco escondidos, e fazer a história da filosofia é restaurar esses problemas e assim descobrir a novidade dos conceitos. A má história da filosofia enfileira os conceitos como se fossem óbvios, como se não fossem criados, e há uma ignorância total dos problemas aos quais... Dou um último exemplo rápido. Dou outro exemplo que não tem nada a ver, só para diversificar.

Muito tempo depois, há um filósofo chamado Leibniz, que faz e inventa um conceito bem extraordinário, a que chamará de "mônada", e escolhe uma palavra técnica, complicada: "mônada".

E, nos conceitos, há sempre algo um pouco louco... Essa mãe que só seria mãe, em outro caso, a idéia pura. Há algo um pouco louco. Pois bem, a mônada leibniziana designa um sujeito, alguém, você ou eu, enquanto alguém que exprime a totalidade do mundo. E ao exprimir a totalidade do mundo, ela só exprime, claramente, uma pequena região do mundo: seu território. Já vimos, já falamos do território. Seu território, ou o que Leibniz chama seu "departamento". Portanto, uma unidade subjetiva que exprime o mundo inteiro, mas só exprime claramente uma região, um departamento do mundo, é o que ele chama uma mônada. Aí também é um conceito, ele o cria, esse conceito não existia antes dele, pergunta-se: mas por quê? Porque ele o cria, é muito bonito, mas por que fazê-lo, por que dizer isso e não outra coisa? É preciso encontrar o problema, não que ele o esconda, mas se não o procuramos um pouco, não o encontraremos. É esse o charme de ler filosofia. Tem tanto charme e é tão divertido quanto ler um romance, ou olhar quadros. É prodigioso. O que percebemos quando lemos? Ele não criou o conceito de mônada por prazer, mas por outras razões, ele coloca um problema, a saber, que tudo no mundo só existe dobrado. Por isso escrevi um livro sobre ele que se chama A dobra. Ele vive o mundo como um conjunto de coisas dobradas umas nas outras. Podemos recuar: por que ele vive o mundo dessa maneira? O que se passa? Como para Platão, talvez a resposta seja: na época, será que as coisas se dobravam mais do que agora? Não temos tempo! O que conta é essa idéia de um mundo dobrado, e tudo é dobra de dobra, nunca se chega a algo completamente desdobrado. A matéria é feita de redobras sobre si mesma, e as coisas do espírito, as percepções, os sentimentos são dobrados na alma. É precisamente porque as percepções, os sentimentos, as idéias estão dobrados em uma alma, que ele constrói esse conceito de uma alma que exprime o mundo inteiro, ou seja, no qual o mundo inteiro se encontra dobrado. Podemos quase dizer: o que é um mau filósofo e o que é um grande filósofo? Um mau filósofo é alguém que não inventa conceitos, e se serve de idéias prontas, emite opiniões. E aí ele não faz filosofia, ele diz: "É isso o que penso". Conhecemos muitos, ainda hoje, mas em todos os tempos houve opiniões. Ele não inventa conceito, não coloca, no verdadeiro sentido da palavra problema, nenhum problema. Fazer história da filosofia é um longo aprendizado, em que se aprende, em que se é aprendiz, nesse duplo campo: a constituição dos problemas, a criação dos conceitos. O que é que mata, o que faz com que o pensamento possa ser idiota, débil, etc.? As pessoas falam, mas nunca se sabe de que problema elas falam. Não só não criam conceitos, elas emitem opiniões, mas além disso, nunca se sabe de que problema elas falam. Ou seja, conhecemos, a rigor, as questões, mas se digo: "Deus existe?", não é um problema. Não disse o problema, onde ele está? Por que coloco tal questão? Que problema está por detrás disso? As pessoas querem colocar a questão: "acredito ou não em Deus?" Mas ninguém liga se acreditam ou não em Deus, o que conta é: por que dizem isso, a que problema isso responde? E que conceito de Deus elas vão fabricar. Se você não tiver nem conceito nem problema, você fica na besteira, não faz filosofia. Isso mostra o quanto a filosofia é divertida, e a história da filosofia, já que é isso fazer história da filosofia! Não é muito diferente do que tem de fazer quando está em frente a um quadro ou uma obra musical.

CP: Voltamos a Gauguin e Van Gogh, já que evocou seus medos antes de abordar a cor. O que aconteceu quando você passou da história da filosofia para sua própria filosofia?

GD: Aconteceu o seguinte: provavelmente a história da filosofia tinha me ensinado coisas, ou seja, me sentia mais capaz de abordar o que é a cor em filosofia. Mas por que isso se coloca? Por que a filosofia não pára? Por que não pára, por que há ainda filosofia hoje? Porque sempre há lugar para criar conceitos. É a publicidade que se apodera dessa noção de conceito. Ela cria conceitos, com os computadores. Há toda uma linguagem que foi roubada da filosofia.

CP: A comunicação.

GD: A comunicação. Deve-se ser criativo, criar conceitos. Mas o que chamam "conceito", "criar" é tão cômico, que não há como insistir. Continua a ser tarefa da filosofia. Nunca me senti tocado por pessoas que dizem: "a morte da filosofia", "ultrapassar a filosofia", são filósofos que dizem coisas tão complicadas. Isso nunca me disse respeito porque me pergunto: "O que isso quer dizer?" Enquanto houver necessidade de criar conceitos, haverá filosofia, é esta sua definição. Os conceitos não estão prontos, é preciso criá-los. E os criamos em função de problemas. Os problemas evoluem. Pode-se, é claro, ser platônico, ser leibniziano, ainda hoje, em 1989, pode-se tudo isso, pode-se ser kantiano. O que significa isto? Quer dizer que se estima que alguns problemas, não todos, colocados por Platão continuam válidos, com certas transformações, então se é platônico, e se utilizam conceitos platônicos. Ainda que hoje se coloquem problemas de outra natureza, não há caso em que não haja um ou vários grandes filósofos que tenham algo a nos dizer sobre os problemas transformados de hoje. Mas fazer filosofia é criar novos conceitos em função dos problemas que se colocam hoje. O último aspecto dessa longa questão seria, é evidente: bem, mas o que é a evolução dos problemas? O que a assegura? Posso sempre dizer: forças históricas, sociais. Sim, claro, mas há algo mais profundo. É misterioso. E não teríamos tempo, mas creio em uma espécie de devir do pensamento, de evolução do pensamento que faz com que não apenas não coloquemos os mesmos problemas, mas com que não os coloquemos do mesmo modo. Um problema pode ser colocado de vários modos sucessivos, e há um apelo urgente, como uma grande corrente de ar, que faz apelo à necessidade de sempre criar, recriar novos conceitos. Há uma história do pensamento que não se reduz à influência sociológica ou... Há um devir do pensamento, que é algo misterioso, que seria preciso definir, que faz com que, talvez, não se pense hoje da mesma maneira que há cem anos. Processos de pensamento, elipses de pensamento, o pensamento tem sua história. Há uma história do pensamento puro. Fazer filosofia, para mim, é exatamente isso. A filosofia só teve, sempre, uma função. Ela não precisa ser ultrapassada, pois tem sua função. Queria dizer alguma coisa?

CP: Como um problema evolui através dos tempos?

GD: Não sei. Deve variar.

CP: Já que o pensamento evolui...

GD: Deve variar conforme cada caso. No século 17, na maioria dos grandes filósofos... qual é a preocupação negativa deles? É impedir o erro. Trata-se de conjurar os perigos do erro. Em outros termos, o negativo do pensamento é que o espírito se engana, evitar que ele se engane. Como evitar o erro? Depois, há um deslocamento bastante lento, e no século 18 começa a surgir um problema diferente. Poderia parecer o mesmo, mas não é: é denunciar não mais o erro, mas denunciar as ilusões. A idéia de que a mente cai no erro, e está rodeada de ilusões, e mais: que ela própria produz ilusões. Não apenas cai em erros, mas produz ilusões, é todo o movimento do século 18, dos filósofos do século 18, a denúncia, a superstição, etc. Poderia parecer com a situação do século 17, mas, na verdade, o problema que começa a surgir é inteiramente novo. Pode-se dizer, também aí há razões sociais, etc., mas há também uma história secreta do pensamento que seria apaixonante fazer, a questão já não é como evitar cair no erro, mas como chegar a dissipar as ilusões pelas quais o espírito está rodeado. E, no século 19, digo coisas simples, rudimentares de propósito. No século 19, o que acontece? É como se algo se deslocasse, e até mesmo se rompesse completamente, mas é, cada vez mais, como evitar, o quê? A ilusão, não. É que os homens, como criaturas espirituais, não param de dizer besteiras. Não é a mesma coisa que uma ilusão. Não é cair em uma ilusão. É como conjurar a besteira. Isso aparece claramente em pessoas no limiar da filosofia. Flaubert estava no limiar da filosofia, o problema da besteira, Baudelaire, o problema da besteira, tudo isso. Já não é o mesmo que a ilusão. Pode-se dizer, está ligado a evoluções sociais, por exemplo, a evolução burguesa no século 19, que faz do problema da besteira um problema urgente. Mas há algo mais profundo nessas evoluções, nessa história dos problemas que o pensamento enfrenta, e quando se coloca um problema, novos conceitos aparecem. De modo que, se se compreende a filosofia desse modo, criação de conceitos, constituições de problemas, os problemas estando mais ou menos escondidos, é preciso redescobri-los. Percebe-se que a filosofia nada tem a ver com o verdadeiro e o falso. A filosofia não é procurar a verdade. Procurar a verdade não quer dizer nada. Trata-se de criar conceitos, o que isso quer dizer? E constituir um problema? Não se trata de verdade ou falsidade, trata-se de sentido! Um problema tem de ter um sentido. Há problemas que não têm sentido, outros que o têm. Fazer filosofia é constituir problemas que têm um sentido e criar os conceitos que nos fazem avançar na compreensão e na solução do problema.

CP: Voltemos a duas questões que lhe concernem mais. Quando você refez a história da filosofia com Leibniz, no ano passado, foi o mesmo que você fez há vinte anos, antes de produzir sua própria filosofia? Foi da mesma maneira?

GD: Não, de modo algum. Pois antes eu me servia, realmente, da filosofia, e da história da filosofia, como um modo de... como uma espécie de aprendizado indispensável, onde procurava quais eram os conceitos dos outros, de grandes filósofos, e a que problemas eles respondiam. Enquanto que agora, no livro que escrevi sobre Leibniz, não há vaidade no que digo, misturei problemas do século 20, que podem ser os meus, com problemas de Leibniz. Dito que estou convencido da atualidade dos filósofos. Fazer como um grande filósofo, o que isso quer dizer? Fazer como ele não é, necessariamente, ser seu discípulo. Fazer como ele é prolongar sua tarefa, é criar conceitos que têm relação com os que ele criou e colocar problemas em relação e em evolução com os que ele criou. Creio que, ao fazer Leibniz, eu estava mais nessa via, enquanto que em meus primeiros livros de história da filosofia, estava no estágio pré-cor.

CP: Você declarou, sobre Spinoza, e pode-se aplicar a Nietzsche, que eles o ligavam à parte escondida e maldita da história da filosofia. O que quis dizer com isso?

GD: Teremos oportunidade de voltar a isso. Para mim, essa parte escondida consiste em pensadores que recusaram qualquer transcendência. Seria preciso definir, voltaremos a falar talvez da transcendência, são autores que recusam os universais, ou seja, a idéia de conceito que têm valor universal, e toda transcendência, ou seja, toda instância que ultrapassa a terra e os homens. São autores da imanência.

CP: Seus livros sobre Nietzsche ou Spinoza fizeram época, você é conhecido por eles. No entanto, não se pode dizer que você é nietzschiano ou spinozista, como se pode dizer de um platônico ou de um nietzschiano. Você atravessou tudo isso, isso lhe servia de aprendizado e você já era deleuziano. Não se pode dizer que você é spinozista!

GD: Você me faz um grande elogio. Se for verdade, fico muito feliz.

CP: Você se sentia spinozista?

GD: Sempre desejei, bem ou mal, posso ter fracassado, mas acho que tentei colocar problemas por minha conta e criar conceitos por minha conta. No limite, sonharia com uma quantificação da filosofia. Cada filósofo seria afetado por um número mágico, segundo o número de conceitos que realmente criou, remetendo a problemas, etc. Haveria números mágicos, Descartes, Hegel, Leibniz. Seria interessante. Não ouso me colocar aí, mas eu teria, talvez, um pequeno número mágico, ou seja, criado alguns conceitos em função de problemas. Simplesmente, digo para mim: minha honra é que, seja qual for o gênero de conceito que tentei criar, posso dizer a que problemas ele respondeu. Senão seria conversa fiada. Acho que acabamos esse ponto.

CP: Para terminar, a última questão. É um pouco provocativo. Em 68, ou mesmo antes, quando todo mundo explicava Marx, lia Reich, não havia provocação de sua parte, voltar-se para Nietzsche, suspeito de fascismo, naqueles anos, e falar de Spinoza e do corpo, quando só se falava de Reich? Sua história da filosofia não funcionava como uma pequena provocação? Não havia provocação?

GD: Não. Isso está ligado ao que acabamos de dizer. É quase a mesma questão, porque o que eu procurava, mesmo o que procurava com Félix, era uma espécie de dimensão realmente imanente do inconsciente. Por exemplo, toda a psicanálise está cheia de elementos transcendentais: a lei, o pai, a mãe, tudo isso. Enquanto que um campo de imanência, que permitisse definir o inconsciente, isso é o campo... Talvez Spinoza pudesse ir mais longe do que ninguém, talvez Nietzsche pudesse ir mais longe do que ninguém. Parece-me que talvez não fosse tanto provocação, era que Spinoza e Nietzsche formam, em filosofia, talvez, a maior liberação do pensamento, quase no sentido de um explosivo. E talvez os conceitos, os conceitos mais insólitos, porque os problemas deles eram problemas um pouco malditos, que não se ousava colocar, na época de Spinoza, em todo caso, com certeza, mas mesmo na época de Nietzsche. Problemas que não se ousa colocar muito, problemas picantes.

22 de novembro de 1994

I de Idéia

CP: I de Idéia. O que é ter uma idéia? Demonstração com o cinema e Vincent Minnelli, o cavaleiro dos sonhos.

GD: Estamos na letra K.

CP: Não, em I. Estamos em I de idéia. Não é mais a idéia platônica que acabamos de evocar. Mais do que fazer um inventário de teorias, você sempre foi um apaixonado pelas idéias dos filósofos, pelas idéias dos pensadores no cinema, ou seja, pelos diretores e pelas idéias dos artistas na pintura. Você sempre deu preferência à idéia, em vez de explicações e comentários. A sua e a dos outros. Por que, para você, a idéia preside tudo?

GD: É verdade. A idéia no sentido em que a usamos, pois não se trata mais de Platão, atravessa todas as atividades criadoras. Criar é ter uma idéia. É muito difícil ter uma idéia. Há pessoas extremamente interessantes que passaram a vida inteira sem ter uma idéia. Pode-se ter uma idéia em qualquer área. Não sei onde não se deve ter idéias. Mas é raro ter uma idéia. Não acontece todos os dias. Um pintor tem tantas idéias quanto um filósofo, mas não se trata do mesmo tipo de idéias. Pensando nas diferentes atividades humanas, seria bom saber sob que forma se apresenta uma idéia em determinados casos? Em Filosofia, acabamos de ver isso. A idéia, em Filosofia, se apresenta na forma de conceitos. Há uma criação de conceitos, e não uma descoberta. Conceitos não se descobrem, são criados. Há tanta criação em uma filosofia quanto em um quadro ou uma obra musical. Os outros têm idéias... Fico impressionado com os diretores de cinema. Há muitos diretores que nunca tiveram uma idéia. As idéias são uma obsessão, elas vão e voltam, se afastam, tomam formas diversas e, através destas formas variadas, elas são reconhecíveis. Para dar um exemplo muito simples, penso em um diretor como Vincent Minnelli. A obra dele não cobre tudo, mas peguei este exemplo por ser mais fácil. Parece-me que ele é uma pessoa que se pergunta o que quer dizer: "As pessoas sonham". Dizer que as pessoas sonham é uma banalidade. As pessoas sonham, sim, mas Minnelli faz uma pergunta muito estranha que lhe é muito particular: "O que quer dizer estar preso num sonho de alguém?" Passa pela comédia, tragédia, pelo abominável, etc. O que quer dizer estar preso no sonho de uma menina? Podem aparecer coisas terríveis por sermos prisioneiro do sonho de alguém. Pode ser um horror. Às vezes, Minnelli nos traz um sonho: "O que é estar preso no pesadelo da guerra?" E o resultado foi o admirável Os cavaleiros do Apocalipse. E ele não vê a guerra como guerra, do contrário, não seria Minnelli, e, sim, como um grande pesadelo. O que quer dizer "estar preso num pesadelo"? Estar preso no sonho de uma menina resulta nos famosos musicais em que Fred Astaire ou Gene Kelly, não sei ao certo, escapa das tigresas e panteras negras. Isso é estar no sonho de alguém. É uma coisa gigantesca. Eu diria que isso é uma idéia. No entanto, não é um conceito. Se Minnelli trabalhasse com conceitos, ele faria Filosofia e não cinema. Eu diria que é preciso distinguir três dimensões, três coisas tão poderosas que se misturam o tempo todo. E este é o meu trabalho futuro. É isso que eu gostaria de fazer e tentar entender melhor isso. Há os conceitos, que são a invenção da Filosofia, e há o que podemos chamar de "perceptos". Os perceptos fazem parte do mundo da arte. O que são os perceptos? O artista é uma pessoa que cria perceptos. Por que usar esta palavra estranha em vez de percepção?

Porque perceptos não são percepções. O que é que busca um homem de Letras, um escritor ou um romancista? Acho que ele quer poder construir conjuntos de percepções e sensações que vão além daqueles que as sentem. O percepto é isso. É um conjunto de sensações e percepções que vai além daquele que a sente. Vou dar alguns exemplos. Há páginas de Tolstoi que descrevem o que um pintor mal saberia descrever. Ou páginas de Tchekov que, de outra maneira, descrevem o calor da estepe. Há um grande complexo de sensações, pois há sensações visuais, auditivas e quase gustativas. Alguma coisa entra na boca. Eles tentam dar a este complexo de sensações uma independência radical em relação àquele que as sentiu. Tolstoi também descreve atmosferas. As grandes páginas de Faulkner! Os grandes romancistas conseguem chegar a isso. Há um grande romancista americano que quase disse isso. Ele não é muito conhecido na França, e gosto muito dele. É Thomas Wolfe. Ele descreve o seguinte: "Alguém sai de manhã, sente o ar fresco, o cheiro de alguma coisa, de pão torrado, etc., um passarinho passa voando... Há um complexo de sensações. O que acontece quando morre aquele que sentiu tudo isso? Ou quando ele faz outra coisa? O que acontece?"

Isso me parece a questão da arte. A arte dá uma resposta para isso: dar uma duração ou uma eternidade a este complexo de sensações que não é mais visto como sentido por alguém ou que será sentido por um personagem de romance, ou seja, um personagem fictício. É isso que vai gerar a ficção. E o que faz um pintor? Ele faz apenas isso também, ele dá consistência a perceptos. Ele tira perceptos das percepções. Há uma frase de Cézanne que me toca muito. Um pintor não faz outra coisa. Há uma frase que muito me impressiona.

Pode-se dizer que os impressionistas distorcem a percepção. Um conceito filosófico ao pé da letra é de rachar a cabeça, porque é o hábito de pensar que é novo. As pessoas não estão acostumadas a pensar assim. É de rachar a cabeça! De certa forma, um percepto torce os nervos e podemos dizer que os impressionistas inventaram perceptos. Mas Cézanne disse uma frase que acho muito bonita: "É preciso tornar o impressionismo durável". Quer dizer que o motivo ainda não adquiriu independência. Trata-se de torná-lo durável e, para isso, são necessários novos métodos. Ele não quis dizer que se deve conservar o quadro, e sim que o percepto adquire uma autonomia ainda maior. Para tal, precisará de uma nova técnica. E há um terceiro tipo de coisa e muito ligada às outras duas. É o que se deve chamar de afectos. Não há perceptos sem afectos. Tentei definir o percepto como um conjunto de percepções e sensações que se tornaram independentes de quem o sente. Para mim, os afectos são os devires. São devires que transbordam daquele que passa por eles, que excedem as forças daquele que passa por eles. O afecto é isso. Será que a música não seria a grande criadora de afectos? Será que ela não nos arrasta para potências acima de nossa compreensão? É possível.

Mas o que quero dizer é que as três estão ligadas. É uma questão de acentuar as coisas. Quando se pega um conceito filosófico, este conceito faz com que se veja as coisas. Os filósofos têm este lado de videntes, pelo menos aqueles de quem gosto. Spinoza faz ver. É um dos filósofos mais videntes que existe. Nietzsche também faz ver. E eles também são fantásticos "lançadores de afectos". É por isso que me vem logo à mente a idéia de uma música destes filósofos. Assim como a música faz ver coisas estranhas. As vezes, ela nos faz ver cores, mas cores que não existem fora da música. E os perceptos também. Todos estão muito ligados. Eu sonho com uma espécie de circulação entre uns e outros, entre os conceitos filosóficos, os perceptos pictóricos, os afectos musicais. E não é de se espantar que existam repercussões. Por mais independentes que sejam estes trabalhos, eles se penetram constantemente.

CP: Essas idéias dos pintores, artistas e filósofos são o contrário de se ter uma idéia, são uma idéia da percepção, do afecto e da razão. Por que você... Na vida, a gente pode ver um filme ou ler um livro que não tem uma idéia nenhuma. Mas isso o chateia muito, não lhe interessa, acha chato. Para você, não interessa ver ou ler alguma coisa que pode ser divertida se não existe uma idéia. Se não tem idéia.

GD: No sentido em que acabo de definir a idéia, não sei como seria possível. Se me mostrar um quadro que não tem percepto nenhum, onde há apenas uma vaca representada com uma certa semelhança, mas sem percepto de vaca, onde a vaca não seja elevada ao grau de percepto, não há interesse. Se me faz ouvir uma música sem afecto, eu nem entenderia o que é. Se me mostrar um filme ou um livro de filosofia idiota, não vejo prazer algum nisso.

CP: Mas não é um livro de filosofia idiota, pode ser humorístico, que contenha humor.

GD: Um livro humorístico pode estar cheio de idéias. Tudo depende do que chama de humorístico. Nunca ninguém me fez rir tanto quanto Beckett ou Kafka. Sou muito sensível ao humor. Acho que é extremamente engraçado. Não gosto tanto dos comediantes na TV.

CP: Menos Benny Hill, que tem uma idéia cômica.

GD: Sim, se ele tiver uma idéia. Mesmo nesta área, os grandes burlescos americanos têm algumas idéias.

CP: Para fechar esta questão mais pessoal, já lhe aconteceu de sentar-se para escrever sem ter idéia do que vai fazer? Se não tem idéia, o que acontece?

GD: Se eu não tenho uma idéia, não me sento para escrever. O que pode acontecer é que a idéia não esteja precisa, que ela me escape, que eu tenha buracos de memória. Eu tive e tenho esta dolorosa experiência, sim. As coisas não fluem. Idéias não nascem prontas. É preciso fazê-las e há momentos terríveis em que se entra em desespero achando que não se é capaz.

CP: É a expressão ou a idéia que faltam? São as duas coisas?

GD: É impossível diferenciá-las. Será que tenho a idéia e não consigo expressá-la ou não tenho idéia alguma? É tão parecido. Se não consigo expressá-la, não tenho idéia. Ou me falta uma parte da idéia, pois ela não chega inteira. Ela vem de partes diferentes, de vários horizontes. Se falta-lhe um pedaço, ela é inutilizável.

21 de novembro de 1994

J de Joie [Alegria]

CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois é um conceito de Spinoza, que tornou a alegria um conceito de resistência e vida. "Evitemos as paixões tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da má-consciência, da culpa e de todos os afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas exploram". Entende-se perfeitamente do que você gosta nisso tudo. Gostaria que distinguisse a alegria da tristeza e definisse o que é a distinção de Spinoza. Você descobriu alguma coisa no dia em que leu isso?

GD: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados de afectos em Spinoza. Vou simplificar muito, mas quero dizer que a alegria é tudo o que consiste em preencher uma potência. Sente alegria quando preenche, quando efetua uma de suas potências. Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor. Entro um pouco na cor.

Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma potência é isso, efetuar uma potência. Mas o que é equívoco é a palavra "potência". E o que é a tristeza? É quando estou separado de uma potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado.

"Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias... não era permitido, etc." É aí que ocorre a tristeza. Qualquer tristeza resulta de um poder sobre mim.

CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.

GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o que diz Spinoza. Mas isso traz problemas. É preciso especificar que não existem potências ruins. O que é ruim não é... O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua potência. Portanto, não há potência ruim, há poderes maus. E talvez todo poder seja mau por natureza. Não, talvez seja muito fácil dizer isso. Mas mostra bem a idéia da ... A confusão entre poder e potência é arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão submissas, separa-as do que elas podem fazer. Tanto que foi deste ponto que partiu Spinoza. Como você citou: "A tristeza está ligada aos padres, aos tiranos..."

CP: Aos juízes.

GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles podem, que proíbem as efetuações de potência. Curiosamente, há pouco, você falou da reputação de anti-semitismo de Nietzsche. Neste exemplo, vê-se esta questão muito importante. Há textos de Nietzsche que poderiam parecer preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da forma como propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os textos em que fala do povo judeu, o que Nietzsche critica nele? O que fez com que, em seguida, dissessem que Nietszche era um anti-semita. É interessante, pois o que ele repreende no povo judeu, em condições específicas, é o fato deste povo ter inventado um personagem que não existia antes: o padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos judeus na forma de um ataque. O ataque é contra o povo que inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações sociais, existem feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre. Eles inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande força filosófica, não deixou de admirar o que detesta, ele disse: "Mas é incrível ter inventado o padre. É uma coisa prodigiosa". Em seguida, fez a ligação direta dos judeus com os cristãos. Só não é o mesmo tipo de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no mesmo caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a filosofia é concreta. Eu diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre. E, a partir daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o poder sacerdotal? Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e o poder real? Estas são questões ainda muito atuais. Pouco antes de sua morte, Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com seus próprios meios. Aí, poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia. Foucault também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que, ao mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o que é este poder de padre e em que está ligado à tristeza? Segundo Nietzsche, o padre se define desta forma: ele inventou a idéia de que os homens estão num estado de dívida infinita. Eles têm uma dívida infinita. Antes, havia histórias de dívida, mas Nietzsche precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram bem depois de Nietzsche que, nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não funcionava tanto através da troca, como se pensava, mas por partes de dívidas: uma tribo tinha uma dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: eles recebiam e devolviam. A diferença com a troca é que havia a realidade do tempo. Era uma restituição diferida. É importante! A dívida precede a troca. São questões filosóficas: a permuta, a dívida, a dívida que precede a troca. É um grande conceito filosófico. Digo filosófico porque Nietzsche disse antes dos etnólogos. Mas enquanto as dívidas têm este regime finito, o homem pode se libertar. O padre judeu invoca, pois, em virtude de uma Aliança, a idéia de uma dívida infinita do povo judeu para com Deus, e os cristãos retomam esta idéia de outra forma, a idéia de dívida infinita ligada a do pecado original. O personagem do padre é muito curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que a Filosofia seja atéia, mas, no caso de Spinoza que já tinha esboçado uma análise do padre, do padre judeu no Tratado Teológico-Político, pode acontecer que conceitos filosóficos sejam verdadeiros personagens. É por isso que a Filosofia é tão concreta. Fazer o conceito do padre é como algum artista faria o quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre trazido por Spinoza, por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma linhagem apaixonante. Eu também gostaria de entrar nesta linha e ver que poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona mais, mas quem o substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral. Em que ele se define? Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas eles têm em comum o fato de manterem-se no poder através das paixões tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo: "Arrependam-se em nome da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita". Por esse caminho, eles têm poder! O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim, existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação das potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O tufão é uma potência. Alegra-se na alma, mas não por derrubar casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é estar alegre pelo que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de si mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o prazer da conquista, como dizia Nietzsche. Mas a conquista não consiste em servir pessoas. A conquista é, para o pintor, conquistar a cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que isso não termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista uma potência, ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela acaba não suportando. Van Gogh!

CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que escapou da dívida infinita, por que se queixa da manhã à noite e é um defensor do lamento e da elegia?

GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela é uma das duas fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande história a ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o lamento do profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que se lamenta e diz: "Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz para ser escolhido por Deus?" Neste sentido, ele é o contrário do padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O que significa: "É grande demais para mim". Eis o que é a queixa: "O que está acontecendo comigo é grande demais para mim". Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê, pois não é só "Ai, ai, que dor!", mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre sabe o que está querendo dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na verdade, querendo dizer: "Que potência está se apoderando da minha perna e que é grande demais para que eu a suporte?" Se formos procurar na História, é muito interessante, pois a elegia é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia? Acho que é a expressão daquele que não tem mais um estatuto social, temporariamente ou não. É por isso que é interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se queixa. Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração. Os queixumes populares, tudo... A queixa do profeta, a de um tema que você conhece bem, que é a queixa do hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do hipocondríaco são bonitas: "Por que tenho um fígado? Por que tenho um baço?" Não é o "Ai, como dói!", e sim "Por que tenho órgãos?" Por que isso, por que aquilo... O lamento é sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo povo... São os excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é, acima de tudo, animada por aquele que não tem mais estatuto social, um escravo livre. Um escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado, mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem estatuto social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a geração dos negros na América com a abolição da escravidão. Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham previsto um estatuto social para eles e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se eles quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte poética. Se eu não fosse filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além do mais, tem um lado pérfido: não se queixe por mim, não me toque. É um pouco como as pessoas demasiadamente polidas. Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há uma espécie de... A queixa é a mesma coisa: "não tenha pena de mim, disso cuido eu". Mas ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de algo ser grande demais para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é grande demais para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se escondê-la em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude louca. Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo Literatura quando digo que a forma como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder, é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para mim. Na felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é detalhe.

CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!

GD: Aí tem menos graça.

CP: Sinto que esta vai ser rápida.

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