9 de outubro de 2008

O olhar japonês de uma cultura e dialeto em vias de desaparição na Bolívia retratado no filme Pachamama

A primeira impressão que se tem do filme Pachamama (El regalo de la pachamama, 2008) do cineasta japonês Toshifumi Matsushita é que se trata de um filme ficcional clássico ancorado numa narrativa cinematográfica tradicional. A estória é de uma comunidade de Quíchua, no sul da Bolívia, onde o menino Q’unturi (Christian Huaygua) trabalha com o pai na criação de lhamas e na extração de sal. É um filme sobre a adolescência de um menino e sua passagem à vida adulta, a experiência do sofrimento, a aprendizagem da cultura e o surgimento do desejo amoroso, o que poderia se passar em qualquer lugar do mundo, afirma o diretor. Perguntei como ele define o filme? Matsushita tentou se esquivar dizendo ser esta uma pergunta difícil de responder, pois prefire que o público o defina por si mesmo. Finalmente respondeu dizendo: um docu-drama.

O tratamento do filme é quase antropológico, pois se baseia nas pesquisas e andanças de Matsushita durante quatro anos nas terras bolivianas. A cada viagem e contato com as comunidades, o roteiro foi se modificando e acrescentando antigos mitos e lendas – mistificando ainda mais o cotidiano local. Ele criou assim um roteiro de situações “épicas e ancestrais” e pediu às pessoas da região, que se tornaram atores do filme, para improvisarem os diálogos – já que o diretor não fala quíchua e pouquíssimo espanhol. Toda a equipe de produção do filme foi composta também por técnicos locais somando assim mais uma das subjetividades dos bastidores da trama.

O grande encontro entre essas duas culturas (boliviana e japonesa), aparentemente distantes, reside na maneira como elas interagem com a natureza. Segundo o diretor, existe uma grande espiritualidade que vem do contato e do respeito com a terra, daí o título, Pachamama – terra mãe. “Eu espero que esse menino passe a sua cultura e língua Quíchua para as gerações seguintes” afirmou Matsushita.

O filme que passou recentemente em Vancouver no Festival Internacional de cinema quando Matsushita concedeu esta entrevista, seguiu logo após para a Mostra de cinema de São Paulo.

5 de outubro de 2008

"Resposta a uma questão sobre o sujeito" por Gilles Deleuze


Um conceito filosófico cumpre uma ou várias funções, nos campos de pensamento que são, também eles, definidos por variáveis interiores. Há, enfim, variáveis exteriores (estados de coisas, momentos da história) em uma relação complexa com variáveis internas e funções. Significa dizer que um conceito não nasce e não morre por prazer, mas na medida em que novas funções em novos campos relativamente destituem-no. É por isso também que não é nunca interessante criticar um conceito: é melhor construir novas funções e descobrir novos campos que o tornem inútil ou inadequado.

O conceito de sujeito não escapa a essas regras. Ele já cumpriu suas funções: inicialmente, uma função de universalização, em um campo no qual o universal não era mais representado por essências objetivas, mas por atos poéticos ou lingüísticos. Nesse sentido, Hume assinala um momento importante na filosofia do sujeito, porque ele invoca atos que ultrapassam o dado (o que se passa quando digo “sempre” ou “necessário”?). O campo correspondente, desde então, não é mais, absolutamente, o do conhecimento, mas, antes, o da “crença”, como nova base do conhecimento: sob quais condições uma crença é legítima, segundo a qual eu digo mais do que aquilo que me é dado? Em segundo lugar, o sujeito cumpre uma função de individuação, em um campo no qual o indivíduo não pode ser uma coisa nem uma alma, mas uma pessoa, viva e vivida, falante e falada (“eu-tu”). Esses dois aspectos do sujeito, o Eu universal e o Mim individual, estão necessariamente ligados? Mesmo ligados, não existe conflito entre eles, e como resolver esse conflito? Todas essas questões animam aquilo que se pode chamar de filosofia do sujeito, já em Hume, mas também em Kant, que confronta um Eu como determinação do tempo e um Mim como determinável no tempo. Em Husserl ainda, questões análogas se porão na última das Meditações cartesianas.

Pode-se atribuir novas funções e variáveis capazes de causar uma mudança? Trata-se de funções de singularização que invadiram o campo do conhecimento, em favor de novas variávies de espaço-tempo. Por singularidade, é preciso não entender alguma coisa que se oponha ao universal, mas um elemento qualquer que pode ser prolongado até a vizinhança de um outro, de maneira a formar uma junção: trata-se de uma singularidade no sentido matemático. O conhecimento e mesmo a crença tendem, pois, a ser substituídos por noções como “agenciamento” ou “dispositivo”, que designam uma emissão e uma repartição de singularidades.

São essas emissões, do tipo “lance de dados”, que constituem um campo transcendental sem sujeito. O múltiplo se torna o substantivo, multiplicidade, e a filosofia à teoria das multiplicidades, que não remetem a nenhum sujeito como unidade prévia. O que conta não é mais o verdadeiro nem o falso, mas o singular e o regular, o remarcável e o ordinário. É a função de singularidade que substitui a de universalidade (em um novo campo que não tem mais utilidade para o universal). Vê-se isso até mesmo no direito: a noção jurídica de “caso”, ou de “jurisprudência”, destitui o universal, em favor de emissões de singularidades e de funções de prolongamento. Uma concepção do direito fundada na jurisprudência dispensa todo “sujeito” de direitos. Inversamente, uma filosofia sem sujeito apresenta uma concepção do sujeito fundada na jurisprudência.

Correlativamente, talvez, se impuseram tipos de individuação que não eram mais pessoais. Pergunta-se sobre o que faz a individualidade de um acontecimento: “uma vida, uma estação, um vento, uma batalha, cinco horas da tarde...”. Pode-se chamar de hecceidadade ou ecceidade essas individuações que não constituem mais pessoas ou mins. E surge a questão de saber se não somos essas heceidades em vez de mins. A filosofia e a literatura anglo-americana são, a esse respeito, particularmente interessantes, porque elas se destacam, freqüentemente, por sua incapacidade por encontrar um sentido atribuível à palavra “mim”, exceto o de uma ficção gramatical. Os acontecimentos colocam questões de composição e de decomposição, de velocidade e de lentidão, de longitude e de latitude, de potência e de afetos muito complexas.

Contra todo personalismo, psicológico ou lingüístico, eles implicam a promoção de uma terceira pessoa, e mesmo de uma “quarta” pessoa do singular, não-pessoa ou Ele, na qual nos reconhecemos melhor, nós mesmos e nossa comunidade, do que em vãs trocas entre um Eu e um Tu. Em suma, cremos que a noção de sujeito perdeu muito de seu interesse em favor de singularidades pré-individuais e de individuações não-pessoais. Mas, precisamente, não é suficiente opor os conceitos entre si para saber qual é o melhor. É preciso confrontar os campos de problemas aos quais eles respondem, para descobrir sob quais forças os problemas se transformam e exigem, eles próprios, a constituição de novos conceitos. Nada do que os grandes filósofos escreveram sobre o sujeito envelhece, mas esta é a razão pela qual nós temos, graças a eles, outros problemas a descobrir, em vez de efetuar “retornos” que mostrariam apenas nossa incapacidade em segui-los. A situação da filosofia não se distingue, aqui, fundamentalmente, da situação das ciências e das artes.

Gilles Deleuze

Tradução de Tomaz Tadeu da Silva


In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org. de David Lapoujade. P. 326-328.

Nota da edição original: O texto original datilografado é datado de fevereiro de 1988. O texto foi publicado, inicialmente, em inglês, em uma tradução de Julien Deleuze para a revista Topoi, setembro de 1988, p. 111-112, sob o título “A philosophical concept...”, antes de ser retraduzido para uma revista francesa (o texto original tinha, então, se extraviado).

18 de setembro de 2008

Derek: saudades do vanguardismo intelectual da era jarmaniana

Derek Jarman (1942-1994) um dos mais criativos, experimentais e inovadores cineastas contemporâneos teve também uma das mais apreciadas, prolíficas e ecléticas carreiras nas artes britânicas. Ele começou cedo nas artes plásticas, e foi nesse trânsito entre a arte pictural e a arte performática do cinema amador que ele desenvolveu seus primeiros projetos no final dos anos 60 e durante os anos 70, ganhando notoriedade mundial com Caravaggio em 1986.

Entre seus fiéis colaboradores e amigos, estavam a atriz Tilda Swinton (estrela de sete de seus filmes) e o cineasta Isaac Julien, que acabam de realizar uma homenagem ao diretor através do documentário, Derek. O documentário reúne assim dois olhares distintos: a poesia e a sensibilidade da atriz que em texto off confidencia ao amigo morto suas inquietudes sobre os tempos atuais do cinema britânico, e por outro lado, o trabalho perspicaz e minucioso de pesquisa de arquivo de imagens sobre a vida de Jarman elaborada por Julien.

A base do filme é uma entrevista que o realizador deu em 1990 ao produtor Colin McCabe e o diretor Bernard Rose. Entre “linhas” se configura um homem sobretudo lúcido e sem remorsos. Ao ser perguntado por Jeremy Isaacs, no programa de televisão Face-to-Face, de como gostaria de ser lembrado, ele afirma que gostaria de desaparecer. Pegar todas as suas obras consigo e evaporar. Este desejo é algo que seus amigos e admiradores não deixaram acontecer, não somente seu jardim é conservado com zelo, como a sua obra é considerada como uma das mais importantes e provocadoras de sua época, algo sem igual nas artes britânicas atuais.

Em Derek, temos a oportunidade de conhecer o homem por detrás da obra – o que na verdade são bastante similares e complementares – através de um olhar íntimo e objetivo ao mesmo tempo. O documentário retraça os passos do diretor e sua forte relação com a religião e a homossexualidade, desde a infância, passando pelos tempos da descoberta sexual ao início de sua carreira, até a relação confidente que mantinha com a mãe, uma dona de casa, que tinha um grande senso intelectual e artístico. O espectador pode também acompanhar cronologicamente os últimos 40 anos de toda uma geração de artistas britânicos que influenciou e formatou uma estética punk e gay (queer) das artes contemporâneas na Inglaterra, culminando por marcar a era Tatcher.

O ecletismo de Jarman pode ser conferido através de seus livros, pinturas, colagens, filmes (Sebastienne, Eduardo II), peças de teatro, vídeos performáticos, vídeo-clipes (o vídeo It’s a sin dirigido por Jarman para o grupo Pet Shop Boys é considerado por ele seu melhor trabalho) até o famoso jardim Prospect Cottage em Dungeness, na província de Kent. Este simboliza para os fãs um dos mais apreciados legados de Jarman, que o transformaram num lugar de pelegrinagem e culto.

Suas obras são bastantes voltadas para a visualidade plástica e não é a toa que seu último filme, Blue, foi todo feito sobre uma tela azul. Ativista gay fervoroso, manifestou em prol dos direitos homossexuais tanto no seu trabalho como artista e cineasta, marcando tendências e promovendo movimentos artísticos tanto quanto transformou sua doença (Aids) em um ato de protesto e reivindicação para a comunidade gay britânica.

Os tempos pós-Jarman são outros, como afirma Swinton em seu texto, o cinema de hoje determina sucesso em termos de bilheteria e audácia artística em termos de individualismo. A atriz sente saudades do amigo e de uma geração que acabou perdendo a sua própria “espiritualidade”. A cultura fílmica atual isola e paralisa vozes originais em nome de um cinema comercial de grandes orçamentos sem visão artística ou experimentalismos.

O documentário estreou no aniversário da morte do diretor em 19 de fevereiro deste ano na Inglaterra, passou pelo Festival do Cinema Queer de Vancouver e segue para o Mix Brasil em Novembro.

Leia aqui o texto que deu origem ao documentário, escrito por Tilda Swinton para o Festival de cinema de Edinburgh em 2002 e publicado pela revista Vertigo.

Hudson Moura

9 de setembro de 2008

"CHICO XAVIER, um herói brasileiro no universo da edição popular" de Magali Oliveira Fernandes





Dia 20 de setembro de 2008, sábado, das 15h às 18h30
Livraria Martins Fontes/Paulista
Avenida Paulista, 509 - Estação Brigadeiro
São Paulo - SP
(11) 2167-9900
(estacionamento: Rua Manoel da Nóbrega, 95)

Formato 17x24cm, 254 páginas, R$ 35,00
ISBN 978-85-7419-836-1

"Nos últimos vinte anos, vários cientistas sociais brasileiros estudaram a expressão religiosa espírita. Houve trabalhos excelentes sobre a história, as modalidades, formas de organização e referentes simbólicos do kardecismo brasileiro. Nesses trabalhos, a figura de Chico Xavier está sempre presente mas, até agora, nenhum – do meu conhecimento – abordou, assim como Magali, a relação entre a forma estética de um jovem pouco letrado e a subseqüente produção literária do médium mais famosos do Brasil."

Do prefácio de Marion Aubrée

Sumário sintetizado

Apresentação Emília Santos Coutinho

Introdução Das páginas de um diário à elaboração deste livro

Capítulo 1 A construção da figura Chico Xavier: pessoa e personagem

Capítulo 2 Uma biografia em movimento

Capítulo 3 O caderno: uma biblioteca à base de tesoura e cola

Pósfacio Cecília Almeida Salles

20 de junho de 2008

Mão na Lata: fotografia artesanal






Confira mais sobre o trabalho do grupo Mão na lata, projeto realizado por Tatiana Altberg, na revista Z Cultural da UFRJ

11 de janeiro de 2008

"Post-scriptum sobre as sociedades de controle" por Gilles Deleuze


I. Histórico

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola (“você não está mais na sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, “pensei estar vendo condenados...”. Foucault (foto acima) analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo e funções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um “interior“, em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. “Controle” é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultrarápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.


II. Lógica

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa.

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em “pastor” laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancos”. É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro - que servia de medida padrão -, ao passo que o controle remete a trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas nossas relações com outrem. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. Por toda parte o surf já substituiu os antigos esportes.

É fácil fazer corresponder a cada sociedade certos tipos de máquina, não porque as máquinas sejam determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de lhes darem nascimento e utilizá-las. As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples, alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa. A família, a escola, o exército, a fábrica não são mais espaços analógicos distintos que convergem para um proprietário, Estado ou potência privada, mas são agora figuras cifradas, deformáveis e transformáveis, de uma mesma empresa que só tem gerentes. Até a arte abandonou os espaços fechados para entrar nos circuitos abertos do banco. As conquistas de mercado se fazem por tomada de controle e não mais por formação de disciplina, por fixação de cotações mais do que por redução de custos, por transformação do produto mais do que por especialização da produção. A corrupção ganha aí uma nova potência. O serviço de vendas tornou-se o centro ou a “alma” da empresa. Informam-nos que as empresas têm uma alma, o que é efetivamente a notícia mais terrificante do mundo. O marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O homem não é mais o homem confinado, mas o homem endividado. É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas.


III. Programa

Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.

O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas “substitutivas”, ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da “empresa” em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina “sem médico nem doente”, que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria “dividual” a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.



Gilles Deleuze
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 219-226. Tradução de Peter Pál Pelbart. Texto original "Post-scriptum sur les sociétés de contrôle" escrito para L'autre journal, nro 1, maio de 1990, e publicado em Pourparlers, Les éditions de Minuit, 1990, pp. 240-247.

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