10 de janeiro de 2012

"O que é um dispositivo?" por Gilles Deleuze


A filosofia de Foucault apresenta-se freqüentemente como uma análise de dispositivos concretos. Mas o que é um dispositivo?1 É antes de mais nada um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras. Cada linha é quebrada, submetida a variações de direção, bifurcante e engalhada, submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos em posição são como vetores ou tensores. Assim as três grandes instâncias que Foucault distinguirá sucessivamente, Saber, Poder e Subjetividade, não têm de maneira alguma contornos fixos, mas são correntes de variáveis em luta umas com as outras. É sempre numa crise que Foucault descobre uma nova dimensão, uma nova linha. Os grandes pensadores são um pouco sísmicos, eles não evoluem mas procedem por crises e por abalos. Pensar em termos de linhas móveis, é a operação de Herman Melville, e havia linhas de pesca, linhas de submersão, perigosas, até mesmo mortais. Há linhas de sedimentação, disse Foucault, mas há linhas de "ruptura", de "fratura". Separar as linhas de um dispositivo, em cada caso, é desenhar um mapa, cartografar, medir a passos terras desconhecidas, e é isso que ele chama de "trabalho sobre o terreno". É necessário instalar-se sobre as próprias linhas, que não se limitam a compor um dispositivo, mas que o atravessam e o arrastam, do norte ao sul, do leste ao oeste ou em diagonal.

As duas primeiras dimensões de um dispositivo, ou aquelas que Foucault separa no início, são as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. Os dispositivos são como máquinas de Raymond Roussel analisadas por Foucault, são máquinas de fazer ver e de fazer falar. A visibilidade não remete a uma luz em geral que viria iluminar os objetos preexistentes, ela é feita de linhas de luz que formam figuras variáveis inseparáveis deste ou daquele dispositivo. Cada dispositivo tem seu regime de luz, maneira pela qual a luz cai, se esfuma, se expande, distribuindo o visível e o invisível, fazendo nascer ou desaparecer um objeto que não existe sem ela. Não é só a pintura mas a arquitetura: assim o "dispositivo prisão" como máquina óptica, para ver sem ser visto. Se há uma historicidade dos dispositivos, é a dos regimes de luz, mas também a dos regimes de enunciados. Pois os enunciados, por sua vez, remetem a linhas de enunciação sobre as quais se distribuem as posições diferenciais de seus elementos: e, se as curvas são elas próprias enunciados, é porque as enunciações são curvas que distribuem variáveis, de modo que uma ciência nesse momento, ou um gênero literário, ou um estado de direito, ou um movimento social, se definem precisamente através de regimes de enunciados que eles fazem nascer. Não são nem os sujeitos nem os objetos, mas os regimes que devem se definir para o visível e para o enunciável, com suas derivações, suas transformações, suas mutações. E, em cada dispositivo, as linhas transpõem alguns limiares, em função dos quais elas são estéticas, científicas, políticas, etc.

Em terceiro lugar, um dispositivo comporta as linhas de força. Dir-se-ia que elas vão de um ponto singular a um outro nas linhas precedentes; de certa maneira elas "retificam" as curvas precedentes, traçam tangentes, envolvem os trajetos de uma linha à outra, operam o vai e vem do ver ao dizer e inversamente, agindo como flechas que não param de entrecruzar as coisas e as palavras, levando adiante a batalha entre elas. A linha de força se produz "em toda a relação de um ponto a outro", e passa por todos os lugares de um dispositivo. Invisível e indizível, ela está estreitamente embaraçada às outras, e, no entanto, pode ser desembaraçada. É ela que Foucault traça, é sua trajetória que ele encontra em Roussel, em Brisset, nos pintores Magritte ou Rebeyrolle. É a "dimensão do poder", e o poder é a terceira dimensão do espaço, interior ao dispositivo, variável com os dispositivos. Ela se compõe, com o poder, com o saber.

Enfim Foucault descobre as linhas de subjetivação. Essa nova dimensão já suscitou tantos mal entendidos que passamos por dificuldades em precisar suas condições. Mais que qualquer outra, sua descoberta nasce de uma crise do pensamento de Foucault, como se ele tivesse que remanejar o mapa dos dispositivos, encontrar para eles uma nova orientação possível, para não deixá-los simplesmente se fechar sobre as linhas de força intransponíveis, impondo contornos definitivos. Leibniz exprimia de maneira exemplar esse estado de crise que relança o pensamento quando se crê que tudo está quase resolvido: pensávamos ter chegado ao porto, mas somos jogados de novo em alto mar. E Foucault, por sua vez, pressente que os dispositivos que analisa não podem ser circunscritos por uma linha que os envolve, sem que outros vetores passem por cima ou por baixo: "transpor a linha", ele diz, como "passar do outro lado"? Essa ultrapassagem da linha de força, é o que se produz quando ela se recurva, faz meandros, afunda, e torna-se subterrânea, ou antes quando a força, em vez de entrar numa concordância linear com outra força, volta-se sobre si própria e se exerce sobre si própria ou se afeta a si mesma. Esta dimensão do Si não é de maneira alguma uma determinação preexistente que se encontraria pronta. Antes de mais nada, uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade em um dispositivo: ela tem que se fazer, contanto que o dispositivo o permita ou possibilite. É uma linha de fuga. Ela escapa às linhas precedentes, ela se lhes escapa. O Si não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que age nos grupos ou nas pessoas, e se subtrai tanto às relações de forças estabelecidas quanto aos saberes constituídos: uma espécie de mais-valia. Não é seguro que todo dispositivo comporte isto.

Foucault considera o dispositivo da cidade ateniense como o primeiro lugar da invenção de uma subjetivação: é que, de acordo com a definição original que ele propõe, a cidade inventa uma linha de força que passa pela rivalidade dos homens livres. Ora, desta linha sobre a qual um homem livre pode comandar outros, separa-se outra muito diferente, segundo a qual aquele que comanda os homens livres deve ele mesmo ser mestre de si. São estas regras facultativas do domínio de si que constituem uma subjetivação, autônoma, mesmo se, na seqüência, ela é chamada a fornecer novos saberes e a inspirar novos poderes. Perguntar-se-á se as linhas de subjetivação não são a borda extrema de um dispositivo, e se elas não esboçam a passagem de um dispositivo a outro: elas preparariam neste sentido as "linhas de fratura". E, assim como as outras linhas, as de subjetivação não têm uma fórmula geral. Brutalmente interrompida, a pesquisa de Foucault deveria mostrar que os processos de subjetivação apresentam eventualmente modalidades totalmente diferente do grego, por exemplo os dispositivos cristãos, os das sociedades modernas, etc. Não se pode invocar dispositivos onde a subjetivação não passe pela vida aristocrática ou pela existência estilizada do homem livre, mas pela existência marginalizada do "excluído"? Assim o sinólogo Tokeï explica como o escravo alforriado perdia de certa forma seu estado social, e se encontrava remetido a uma subjetividade isolada, queixosa, existência elegíaca, de onde ele iria retirar novas formas de poder e saber. O estudo das variações dos processos de subjetivação parece mesmo ser umas das tarefas fundamentais que Foucault deixou àqueles que o seguiriam. Nós cremos na fecundidade extrema desta pesquisa, que os projetos atuais, no que concerne a uma história da vida privada, abrangem apenas parcialmente. Quem se subjetiva são às vezes os nobres, aqueles que dizem, segundo Nietzsche, "nós os bons...", mas sob outras condições são os excluídos, os maus, os pecadores, ou podem também ser os eremitas, ou também as comunidades monacais ou mesmo os hereges: toda uma tipologia de formação subjetiva em dispositivos móveis. E por toda parte misturas a serem desfeitas: as produções de subjetividade escapam dos poderes e dos saberes de um dispositivo para se reinvestirem nos poderes e saberes de um outro dispositivo, sob outras formas ainda por nascer.

Os dispositivos têm portanto como componentes linhas de visibilidade, de enunciação, linhas de força, linhas de subjetivação, linhas de ruptura, de fissura, de fratura, e todas se entrecruzam e se misturam, de modo que umas repõem as outras ou suscitam outras, através de variações ou mesmo de mutações de agenciamento. Duas conseqüências importantes decorrem disto para uma filosofia dos dispositivos. A primeira é o repúdio aos universais. O universal na verdade não explica nada, é ele que deve ser explicado. Todas as linhas são linhas de variação, que não têm nem mesmo coordenadas constantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito, não são universais, mas processos singulares, de unificação, de totalização, de verificação, de objetivação, de subjetivação imanentes a um determinado dispositivo. E ainda, cada dispositivo é uma multiplicidade na qual operam determinados processos em devir, distintos daqueles que operam em outro. É neste sentido que a filosofia de Foucault é um pragmatismo, um funcionalismo, um positivismo, um pluralismo. Talvez seja a Razão que apresente o maior problema , porque processos de racionalização podem operar sobre segmentos ou regiões de todas as linhas consideradas. Foucault homenageia a Nietzsche com uma historicidade da razão; ele assinala toda a importância de uma pesquisa epistemológica sobre as diversas formas de racionalidade de saber (Koyré, Bachelard, Canguilhem), de uma pesquisa sociopolítica dos modos de racionalidade do poder (Max Weber). Ele reserva, talvez, para si mesmo, a terceira linha, os estudos dos tipos de "razão" em sujeitos eventuais. Mas o que ele recusa essencialmente, é a identificação destes processos em uma Razão por excelência. Ele recusa toda restauração dos universais de reflexão, de comunicação, de consenso. Pode-se dizer desta maneira que suas relações com a Escola de Frankfurt, e com os sucessores desta escola, são uma longa seqüência de mal entendidos pelos quais ele não é responsável. Da mesma forma que não há a universalidade de um sujeito fundador ou de uma Razão por excelência que permitiria julgar os dispositivos, não há universais da catástrofe onde a razão se alienaria, desmoronaria de uma vez por todas. Como Foucault diz a Gerard Raulet, não há uma bifurcação da razão mas ela não para de se bifurcar, há tantas bifurcações e desdobramentos quanto instaurações, tantos desabamentos quanto construções, segundo os cortes operados pelos dispositivos, e "não há nenhum sentido sob a proposição segundo a qual a razão é um longo discurso que agora terminou". Deste ponto de vista, a questão que se coloca a Foucault, de saber se é possível avaliar o valor relativo de um dispositivo, se não se pode invocar valores transcendentes como coordenadas universais, é uma questão com a qual se corre o risco de retroceder e de perder o sentido. Dir-se-á que todos os dispositivos se eqüivalem (niilismo)? Há muito tempo que pensadores como Espinosa ou Nietzsche demonstraram que os modos de existência deviam ser avaliados de acordo com critérios imanentes, segundo seu teor de "possibilidades", de liberdade, de criatividade sem apelar-se a valores transcendentes. Foucault fará a mesma alusão a critérios "estéticos", compreendidos como critérios de vida, que substituem as pretensões de um julgamento transcendente por uma avaliação imanente. Quando lemos os últimos livros de Foucault, devemos nos esforçar para compreender o programa que ele propõe aos seus leitores. Uma estética intrínseca dos modos de existência, como última dimensão dos dispositivos?

A segunda conseqüência2 de uma filosofia dos dispositivos é uma mudança de orientação, ela se desvia do Eterno para apreender o novo. Não se supõe que o novo designe a moda, mas pelo contrário, a criatividade variável segundo os dispositivos: de acordo com a questão que começou a ser formulada no século XX, como é possível no mundo a produção de alguma coisa nova? É verdade que, em toda sua teoria da enunciação, Foucault recusa explicitamente a "originalidade" de um enunciado como critério pouco pertinente, pouco interessante. Ele quer considerar somente a "regularidade" dos enunciados. Mas o que ele entende por regularidade, é o traçado da curva que passa pelos pontos singulares, ou os valores diferenciais do conjunto enunciativo (assim ele definirá as relações de força por distribuições de singularidades em um campo social). Quando ele recusa a originalidade de um enunciado, ele quer dizer que a eventual contradição de dois enunciados não é suficiente para os distinguir, nem para marcar a novidade de um em relação ao outro. Pois o que conta é a novidade do próprio regime de enunciação, na medida que ele pode abranger enunciados contraditórios. Por exemplo, pode se perguntar qual regime de enunciado aparece com o dispositivo da Revolução francesa ou da Revolução bolchevique: é a novidade do regime que conta, e não a originalidade do enunciado. Todo dispositivo se define assim por seu teor de novidade e criatividade, que marca ao mesmo tempo sua capacidade de se transformar, ou de se cindir em proveito de um dispositivo futuro, ou ao contrário, de fortificar-se sobre suas linhas mais duras, mais rígidas ou sólidas. Na medida que elas escapam das dimensões do saber e poder, as linhas de subjetivação parecem particularmente capazes de traçar caminhos de criação, que não param de abortar, mas também, de serem retomados, modificados, até a ruptura do antigo dispositivo. Os estudos ainda inéditos de Foucault sobre os diversos processos cristãos, abrem sem dúvida numerosas vias a este respeito. Contudo, não se acreditará que a produção de subjetividade seja devolvida à religião: as lutas anti-religiosas são também criadoras assim como os regimes de luz, de enunciação ou de dominação, passam pelos domínios os mais diversos. As subjetivações modernas não se parecem mais nem com a dos Gregos nem com a dos cristãos, e o mesmo ocorre com a luz, com os enunciados e os poderes.

Nós pertencemos a dispositivos e agimos neles. A novidade de um dispositivo em relação aos precedentes pode ser chamada de sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nós nos tornamos, aquilo que estamos nos tornando, isto é o Outro, nosso tornar-se outro. Em todo dispositivo, é preciso distinguir aquilo que nós somos (aquilo que nós já não somos mais) e aquilo que nós estamos nos tornando: a parte da história, e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho daquilo que nós somos e que paramos de ser, enquanto que o atual é o esboço daquilo que nós nos tornamos. De modo que a história ou o arquivo é o que nos separa ainda de nós mesmos enquanto que o atual é este Outro com o qual nós já coincidimos. Acreditou-se, às vezes, que Foucault desenhava o quadro da sociedade moderna com o dispositivo das sociedades disciplinares em oposição aos velhos dispositivos de soberania. Mas isto não quer dizer nada: as disciplinas descritas por Foucault são a história daquilo que nós deixamos de ser pouco a pouco, e nossa atualidade se delineia nas disposições de controle aberto e contínuo, muito diferentes das recentes disciplinas fechadas. Foucault concorda com Burroughs, que anuncia nosso futuro controlado ao invés de disciplinado. A questão não é saber se é pior. Pois também nós apelamos para produções de subjetividade capazes de resistir a esta nova dominação, muito diferente daquelas que se exerciam antigamente contra as disciplinas. Uma nova luz, novos enunciados, uma nova potência, novas formas de subjetivação? Em todo dispositivo, nós temos que desembaraçar as linhas do passado recente das do futuro próximo: a parte do arquivo da parte do atual, a parte da história daquela do devir, a parte da analítica e a do diagnóstico. Se Foucault é um grande filósofo, é porque ele se serviu da história em proveito de outra coisa: como dizia Nietzsche, agir contra o tempo e assim mesmo sobre o tempo, em favor espero de um tempo que está porvir. Pois o que aparece como o atual ou o novo segundo Foucault, é o que Niestzsche chamava de intempestivo, do inatual, este devir que se bifurca com a história, este diagnóstico que continua a análise por outros caminhos. Não predizer mas estar atento ao desconhecido que bate à porta. Nada o mostra melhor que uma passagem fundamental da Arqueologia do saber, e que vale por toda a obra:

A análise do arquivo comporta, pois, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente de nossa atualidade, trata-se da orla do tempo que cerca nosso presente, que o domina e que o indica em sua alteridade; é aquilo que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desenvolve suas possibilidades (e o controle de suas possibilidades) a partir dos discursos que começam a deixar justamente de ser os nossos; seu limiar de existência é instaurado pelo corte que nos separa do que não podemos mais dizer e do que fica fora de nossa prática discursiva; começa com o exterior de nossa própria linguagem; seu lugar é o afastamento de nossas próprias práticas discursivas. Nesse sentido, vale para nosso diagnóstico. Não porque nos permitiria levantar o quadro de nossos traços distintivos e esboçar, antecipadamente, o perfil que teremos no futuro, mas porque nos desprende de nossas continuidades; dissipa essa identidade temporal em que gostamos de nos olhar para conjurar as rupturas da história; rompe o fio das teleologias transcendentais e aí onde o pensamento antropológico interrogava o ser do homem ou sua subjetividade, faz com que o outro e o externo se manifestem com evidência. O diagnóstico assim entendido não estabelece a autenticação de nossa identidade pelo jogo das distinções. Ele estabelece que somos diferença, que nossa razão é a diferença dos discursos, nossa história a diferença dos tempos, nosso eu a diferença das máscaras.” (FOUCAULT, [1969], 1987: 150 e 151)3.

As diferentes linhas de um dispositivo se dividem em dois grupos: linhas de estratificação ou de sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última conseqüência deste método é o que trata toda a obra de Foucault. Na maior parte dos seus livros, ele determina um arquivo preciso, com meios históricos extremamente novos, sobre o Hospital Geral no século XVII, sobre a clínica no século XVIII, sobre a prisão no século XIX, sobre a subjetividade na Grécia antiga, depois no cristianismo. Mas é a metade de sua tarefa. Pois por causa do rigor, por vontade de não misturar tudo, por confiança no leitor, ele não formula a outra metade. Ele a formula somente e explicitamente nas entrevistas contemporâneas a cada um de seus livros: o que é hoje em dia a loucura, a prisão, a sexualidade? Quais modos novos de subjetivação nós vemos aparecer hoje que, certamente, não são gregos nem cristãos? Esta última questão, principalmente, persegue Foucault até o fim (nós que não somos mais gregos nem mesmo cristãos...). Se Foucault até o fim da sua vida dava tanta importância às suas entrevistas, na França e mais ainda no estrangeiro, não é por gosto da entrevista, é porque ele ali traçava linhas de atualização que exigiam um modo de expressão diverso daquele exigido pelas linhas assimiláveis nos grandes livros. As entrevistas são diagnósticos. Como em Nietzsche, onde é difícil ler as obras sem juntar o Nachlass4 contemporâneo de cada uma destas obras. A obra completa de Foucault, tal como a concebiam Defert e Edwald, não pode separar os livros que nos marcaram a todos, e as entrevistas que nos levam a um porvir, à um devir: os estratos e as atualidades.

Resumo das discussões.
Sr. Karkeits nota que Gilles Deleuze não empregou a palavra "verdade". Onde deve se colocar o dizer verdadeiro que Foucault fala nas suas últimas entrevistas? Trata-se de um dispositivo em si? Ou é uma dimensão de todo dispositivo?
Gilles Deleuze responde que, em Foucault, não há nenhuma universalidade do verdadeiro. A verdade designa o conjunto das produções que se fazem no interior de um dispositivo. Um dispositivo abrange verdades de enunciação, verdades de luz e de visibilidade, verdades de força, verdades de subjetivação. A verdade é a efetuação das linhas que constituem o dispositivo. Extrair do conjunto dos dispositivos uma vontade de verdade que passasse de uma à outra como uma constante é uma proposição sem sentido segundo Foucault.

Manfred Franck observa que a filosofia de Foucault pertence a uma tradição pós-hegeliana e pós-marxista que queria romper com o universal do pensamento do Iluminismo. Contudo, acha-se em Foucault universais de toda a sorte: dispositivos, discursos, arquivos, etc., que provam que a ruptura com o universal não é radical. No lugar de um universal, encontram-se vários, em vários níveis.
Gilles Deleuze sublinha que a verdadeira fronteira está entre constantes e variáveis. A crítica dos universais pode se traduzir numa questão: como é possível que alguma coisa nova surgisse no mundo? Outros filósofos, Whitehead, Bergson, fizeram desta questão a questão fundamental da filosofia moderna. Pouco importa que se empregue os termos gerais para pensar os dispositivos: são nomes de variáveis. Toda constante é suprimida. As linhas que compõem os dispositivos afirmam variações contínuas. Não há mais universais, isto quer dizer que não há nada mais do que linhas de variação. Os termos gerais são coordenadas cujo sentido é tão somente o de tornar possível a avaliação de uma variação contínua.

Raymond Bellour pergunta onde se deve situar os textos de Foucault que se relacionam com a arte: do lado do livro, e portanto do arquivo, ou do lado das entrevistas e portanto do atual?
Gilles Deleuze lembra o projeto de Foucault de escrever um livro sobre Manet. Nesse livro Foucault teria sem dúvida analisado mais que as linhas e as cores, o regime de luz de Manet. Esse livro teria pertencido ao arquivo. As entrevistas teriam tirado do arquivo as linhas de atualidade.
Foucault poderia ter dito: Manet é o que o pintor deixa de ser. Isso não retira nada do valor de Manet. Pois a grandeza de Manet é o devir de Manet no momento em que ele pinta. Essas entrevistas teriam consistido em separar linhas de fissura e de fratura que fazem com que os pintores de hoje entrem em regime de luz dos quais se dirá: eles são outros, isto é, há um devir outro da luz.
Para as artes também, há a complementariedade dos dois aspectos da analítica (do que nós somos e por isso mesmo do que nós deixamos de ser) e do diagnóstico (o devir outro no qual nós chegamos). A analítica de Manet implica num diagnóstico daquilo que torna-se a luz a partir de Manet e depois dele.

Walter Seitter se espanta com o "fisicalismo" que permeia a apresentação de Gilles Deleuze.
Gilles Deleuze refuta a expressão na medida em que ela deixaria supor que, sob regimes de luz, haveria uma luz bruta fisicamente enunciável. O físico é um limiar de visibilidade e de enunciação. Não há nenhum dado, em um dispositivo, que esteja no seu estado selvagem, mas que haja um regime físico da luz, de linhas de luz, de ondas e vibrações, por que não?

Fati Tricki pergunta como e onde introduzir nos dispositivos a possibilidade de demolição das técnicas modernas da servidão. Onde podem se localizar as práticas de Michel Foucault?
Gilles Deleuze indica que não há uma resposta geral. Se há diagnóstico em Foucault, é porque é preciso assinalar, para cada dispositivo, suas linhas de fissura e de fratura. Em certos momentos elas se situam no nível dos poderes, noutros no nível dos saberes. De um modo geral, pode-se dizer que as linhas de subjetivação indicam as fissuras e as fraturas. Mas trata-se de uma casuística. Tem-se que avaliar de acordo com o caso, de acordo com o teor dos dispositivos. Dando-se uma resposta geral, suprimisse esta disciplina que é tão importante quanto a arqueologia, isto é, a disciplina do diagnóstico.

Faiti Tricki pergunta se a filosofia de Foucault pode chegar a romper os muros do ocidente. É uma filosofia extra-muros?
Gilles Deleuze: Foucault restringiu por muito tempo seu método às seqüências curtas da história francesa. Mas com os últimos livros, ele visa uma seqüência longa, desde os gregos. Uma mesma extensão pode-se fazer geograficamente? Pode-se servir de métodos análogos aos de Foucault para estudar os dispositivos orientais ou aqueles do Oriente Médio? Certamente, pois a linguagem de Foucault, que considera as coisas como feixes de linhas, como emaranhado, como conjuntos multilineares, é como oriental.

Notas da tradução:
1. Tradução de Ruy de Souza Dias (com agradecimentos a Fernando Cazarini) e Helio Rebello (revisão técnica), finalizada em março de 2001, a partir do texto: DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce qu'un disposif? IN Michel Foucault philosophe. Rencontre internationale. Paris 9, 10, 11 janvier 1988. Paris, Seuil. 1989.
2. A partir deste parágrafo e até o Resumo das discussões este texto foi traduzido e publicado como Foucault, historiador do presente IN ESCOBAR, Carlos Henrique (org.) Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991:85-88.
3. FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. [1969].Tradução de Luiz Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
4. Nachlass: [Do Alemão: nach: depois; lass: deixado.] deixado pra depois; rascunhos; escritos não publicados; espólio; herança.

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