Resenha
Arte contemporânea: uma introdução. Anne CAUQUELIN. São Paulo, Martins Fontes, 2005.
por Manoela Afonso
afonso.manoela(arroba)gmail.com
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Índice
Introdução
Os Regimes da Arte
1. Regime do Consumo
2. Regime da Comunicação
Figuras e Modos de Arte Contemporânea
1. Embreantes
2. A Atualidade
Bibliografia Auxiliar
Introdução
Saber em que contexto se encontra o autor de uma obra (seja ela literária, artística, filosófica, jornalística, ou outra), é uma importante condição para se analisar e compreender as idéias por ele apresentadas. No caso do livro ‘Arte contemporânea: uma introdução’ é preciso levar em conta de que se trata de uma publicação de 1992 - portanto de 14 anos atrás - que reflete o pensamento de uma mulher européia, formada em filosofia, professora da Universidade de Paris, especialista em arte contemporânea e co-diretora de uma revista sobre estética chamada Revue d'esthétique. Dessa maneira é possível entender o porquê de algumas escolhas de Anne Cauquelin (foto): a autora alicerça sua construção teórica na história da arte ocidental a partir do final do século XIX, com o objetivo de caminhar em direção a um entendimento da arte contemporânea – já em meados da segunda metade do século XX. Vale ressaltar que o seu campo de análise se restringe, nesse livro, a um recorte histórico da produção artística do eixo Paris-Nova Iorque.
Para organizar o seu pensamento, Cauquelin dispõe o assunto didaticamente em dois pólos: o da arte moderna e o da arte contemporânea. Para confrontar tais pólos e melhor analisar as características que definem cada um deles, a autora se utiliza do Sistema da Arte como pano de fundo dessa discussão.
Na primeira parte de seu livro, Cauquelin deixa claro ao leitor quais são os dois regimes da arte por ela propostos: o regime do consumo e o da comunicação, ligados à arte moderna e à arte contemporânea, respectivamente. O período de ruptura entre tais regimes é analisado através de figuras chamadas embreantes que, resumidamente, pode-se entender como indivíduos que demonstram práticas e pensamentos à frente de seu tempo.
A argumentação teórica dividida em ‘regimes da arte’ não só ajuda a visualizar possíveis características determinantes da arte moderna e contemporânea, como também revela um pouco a respeito do funcionamento do Sistema da Arte e de suas modificações com o passar das décadas. À medida que Cauquelin relaciona arte e mercado, os lugares que cada um dos componentes desse Sistema ocupa ficam mais evidentes, são confrontados e revelam suas adaptações à nova estrutura econômica da sociedade.
Quem é o produtor de arte? Quem a comercializa? Quem a coleciona? Quem define o que é ou não é arte? Quem a consome? É em meio a tantas questões inquietantes que Cauquelin procura caracterizar a arte contemporânea e desvendar o meio em que ela circula.
OS REGIMES DA ARTE
1. Regime do Consumo
Cauquelin, de início, procura distinguir rapidamente os termos ‘moderno’, ‘modernismo’ e ‘modernidade’, mesmo porque ao fazer isso ela define o seu ponto de partida temporal, que é por volta de 1860. A princípio, a autora associa ao termo ‘moderno’ as seguintes características: o gosto pela novidade; a recusa do passado; a posição ambivalente de uma arte ao mesmo tempo efêmera e eterna.
É nesse período e devido a tais características que a Academia de arte se depara com o fim de sua hegemonia. Essa decadência é também um fator resultante, em parte, das mudanças econômicas sofridas pela sociedade no final do século XIX e da sua repercussão no campo da arte.
Sendo assim, é possível deduzir que a recusa à Academia se dá por, pelo menos, dois motivos: a manutenção que ela dava à rigidez artística estabelecida e a falta de adaptação ao novo ritmo econômico industrial. A Academia foi, portanto, renegada pela modernidade, mas o status que ela garantia aos artistas e às obras não era algo a ser descartado. Sucesso, reconhecimento e dinheiro em giro sempre foram fatores de interesse e, se a Academia não podia mais garanti-los, era preciso haver outra instituição que o fizesse e que soubesse lidar com esse novo regime do consumo.
Tanto o artista quanto o consumidor pertencente às classes sociais em ascensão, eram dependentes desse reconhecimento acadêmico, o qual garantia o que era ‘verdadeiramente’ arte e se ela possuía algum valor. A dependência desse juízo de valor conferiu às novas instituições de arte, já em processo de privatização, um enorme poder de legitimação: elas passaram, cada vez mais, a definir o que deveria ser aceito ou refutado.
Dessa forma, então, instaurou-se o Sistema de Arte com todos os seus atores – marchands, críticos, curadores, colecionadores, conservadores, museus, galerias – os quais, a princípio, possuíam tarefas distintas. Cauquelin, ao longo de seu texto, procura identificar as características de cada uma dessas figuras e as transformações por elas sofridas devido às mudanças na estrutura econômica da sociedade. O crescente processo de industrialização foi o ponto de solidificação do mercado e de fortalecimento do poder das instituições, pois cada vez mais a arte passou a ser tratada como um produto que precisava e deveria ser consumido.
2. Regime da Comunicação
Produção – distribuição – consumo: esse é o esquema tripartite proposto por Cauquelin para se compreender o mercado de bens materiais e simbólicos na modernidade. A virada da era industrial para a era tecnológica resultou numa inevitável mistura de papéis: produtor, distribuidor e consumidor não mais possuem atividades específicas. A lógica da estrutura de consumo foi transformada aos poucos devido aos incrementos tecnológicos que levaram à era da comunicação, sendo que outros profissionais foram sendo agregados ao Sistema da Arte. São eles os especialistas em geração, apresentação e distribuição da informação.
O regime da comunicação proporcionará, então, mudanças significativas e irreversíveis na relação homem-espaço-tempo-consumo e, consequentemente, na relação disso tudo com a arte.
No mundo da comunicação o produto de interesse é a informação. Dessa maneira, a lei que rege a arte passa a ser a mesma que atua na emissão e distribuição da informação. Aquele que dispõe dos meios para passá-la adiante é que será o produtor dentro desse novo regime. O produto gerado agora é o ‘valor’.
Diferentemente do artista da modernidade, o atual produtor lida com os signos – e com a especulação de seu valor – dentro da rede de informação. O artista garante o aspecto visual; ele e sua arte são objetos a serem disponibilizados na rede. E é em cima desses dois elementos (artista e obra) que serão construídos os signos que circularão na rede como informação emblemática da arte contemporânea.
A autora procura destacar alguns pontos - chamados por ela de ‘efetuadores’ – que dão suporte à análise do regime da comunicação. São eles: rede; bloqueio; redundância e saturação; nominação; construção da realidade. A rede – com a conseqüente interação por ela proporcionada – é um elemento de crucial importância para o funcionamento do Sistema da Arte dentro desse novo regime: redes internacionais de artistas, galerias e instituições culturais, interação entre mercados, entre outras estruturas, ligam-se mundialmente graças às redes velozes de informação.
A interatividade permite que as “redes interconectadas se auto-organizem, repercutindo umas nas outras” (CAUQUELIN, 2005, p. 60) o que causa o problema da circularidade e, por conseqüência, a perda da referência de início, fim, origem ou destino da informação; não há mais orientação principal e nem autor definido. “Essas transformações alcançam o domínio artístico em dois pontos: no registro da maneira como a arte circula, ou seja, no mercado (ou continente), e no registro intra-artístico (ou conteúdos das obras)” (Idem, p. 65).
Nessa rede complexa de comunicação, os atores mais ativos são os que possuem a maior quantidade de informação e, de preferência, adquiridas no menor espaço de tempo possível. Embora Cauquelin aponte alguns problemas – como a redundância e a saturação – percebe-se que a rede tornou-se indispensável ao artista e à sua obra. É condição fundamental que o artista contemporâneo seja projetado pela rede, que ele esteja em vários lugares do mundo ao mesmo tempo, que aceite as regras de renovação e individualização permanente propostas por esse novo sistema de circulação da informação. “O artista tem de ser internacional, ou não ser nada; ele está preso na rede ou permanece de fora” (Idem, p. 75).
Mas o artista e sua obra precisam mais que apenas estar na rede; eles têm que, através da nominação, conseguir se sobressair e vencer a saturação provocada pela inevitável circularidade. O paradoxo encontra-se justamente nesse aspecto: a renovação constante é também uma repetição, uma saturação da nominação (uma falência, por repetição, da solução de um problema) e, quando explorada ao extremo, leva a obra e o artista a uma circularidade banalizada, a uma espetacularização praticamente sem volta.
FIGURAS E MODOS DE ARTE CONTEMPORÂNEA
1. Embreantes
Segundo Cauquelin, o embreante é uma figura de ruptura entre o regime do consumo e o regime da comunicação. Mas talvez seja mais adequado considerá-lo como um elemento de transição e não de ruptura, uma vez que a própria autora admite que os embreantes fazem referência a modos temporais, ou seja, à conexão que se operou entre passado e presente.
Apesar de estarem situados historicamente na modernidade, os embreantes escolhidos pela autora – Marcel Duchamp, Andy Warhol e Leo Castelli - são figuras reveladoras de indícios da mudança de um regime, sendo citados até os dias de hoje e provocando o pensamento na atualidade. Segundo Cauquelin (Idem, p. 88), “esses três personagens têm em comum o exercício de uma atividade que responde aos axiomas-chave do regime de consumo”. Devido a tais fatores a autora os coloca inseridos na arte contemporânea.
Marcel Duchamp influencia cada vez mais a arte contemporânea com o passar dos anos. Algumas características de sua arte contribuem para esse fenômeno. São elas: separação entre arte e estética (o que acabou integrando a arte em outras esferas de atividades); mistura de papéis dos agentes da esfera artística (produtor-intermediário-consumidor); abandono da vanguarda e da figura romântica de artista; presença de jogos de linguagem na arte.
Com a sua posição de ‘antiartista’ e com a criação dos ready-mades, Duchamp esvaziou o conteúdo emocional e intencional do artista e da obra. Formas, cores, visões, interpretações da realidade, estilo, não interessam mais. O “fazer à mão” é abandonado e dá lugar a um trabalho com signos, ou seja, Duchamp não oferece novas imagens, mas sim propõe um exercício da arte num sistema de comunicação.
Ao afirmar que qualquer objeto pode ser arte, desde que num determinado momento, Duchamp fortalece o poder da instituição de arte, pois a partir de então “o lugar de exposição torna os objetos obras de arte. É ele que dá o valor estético de um objeto, por menos estético que seja” (Idem, p. 94). O valor não está mais na obra em si, mas no espaço-palco onde é mostrada essa obra. O artista não é mais aquele que cria e executa; é apenas quem mostra, escolhe e utiliza o material, dando-lhe, segundo Cauquelin (Idem, p. 97) um “coeficiente de arte”.
Portanto, há um abandono da idéia de vanguarda e da figura romântica do artista: “o jogo da arte consiste em especular a respeito do valor da simples exposição de um objeto manufaturado” (Idem, p. 100). Os jogos de linguagem e de construção da realidade ganham importância. “Expor um objeto é intitulá-lo” (Idem, p. 101). Sendo assim, a arte deixa de ser emoção para ser algo pensado (a arte restrita ao pensamento foi o que levou Hegel, em meados de 1820, a reconhecer a sua morte).
Andy Warhol, também um embreante, é um exemplo de artista que tratou arte como negócio (business-art) e soube usar muito bem a rede para a viabilização de sua empreitada.
De desenhista de publicidade e artista pop reconhecido, Warhol transformou-se num empreendedor: via a arte articulada à sociedade e ao mundo dos negócios. Warhol elegeu, enquanto proposta artística, os objetos de consumo para serem mostrados e reproduzidos em larga escala. Sua fascinação por tais objetos era tão grande que ele mesmo se transformou num deles: Warhol fabricou o produto Warhol. Seu nome passou a ser a própria obra que virou uma marca para diversos de seus empreendimentos artísticos: pinturas, filmes, fotografias, exposições, textos.
Diferentemente de Duchamp, para quem o ‘espaço’ era o responsável por determinar o que era arte, Andy Warhol afirma que não é mais esse espaço físico (museu, galeria) que define algo, mas sim, o espaço da comunicação: a rede. O percurso desse artista, segundo a autora, ajuda a vislumbrar uma possível definição para arte contemporânea: um “sistema de signos circulando dentro de redes” (Idem, p. 120).
Segundo Mammí, a partir do momento em que qualquer objeto passa a ser considerado obra, os limites da arte passam ao domínio do campo da filosofia da arte. Duchamp e Warhol foram agentes transformadores do que vinha sendo considerado arte a partir do raciocínio proveniente de uma história linear. Com tal transformação, institui-se o fim da arte proposto por Danto, pois a narrativa linear, o “movimento progressivo rumo a uma consciência sempre maior de seus meios” (MAMMÍ, 2001, p. 79) daria lugar agora a uma arte pós-histórica, a uma não-linearidade da narrativa.
O terceiro embreante, Leo Castelli, foi um galerista que, assim como Andy Warhol, usou a rede para viabilizar seu negócio internacionalmente. Castelli se utilizou de certos aspectos da rede de comunicação como o consenso, o bloqueio e a internacionalização, mas foi o domínio da ‘informação’ que lhe ofereceu a condição para que se tornasse um profissional bem sucedido. Ao invés de estabelecer concorrência, firmou acordos com outras instituições globo afora, documentou todos esses procedimentos, criando uma imensa rede de relacionamento e de informação. A sua fórmula foi garantir o sucesso global dos artistas representados por sua galeria, pois, dessa forma, estaria garantindo também o seu próprio sucesso, num processo cíclico de investidas bem sucedidas dentro de uma concordância entre as principais instituições artísticas do mundo.
2. A atualidade
Após a ação desses embreantes, Cauquelin procura identificar o seu eco na arte atual. A autora constata que é por fragmentos que as proposições dos embreantes são utilizadas hoje na arte. Valores da arte moderna estão presentes na arte contemporânea. A mistura do tradicional à novidade e o olhar para o passado caracterizam esse momento. Para exemplificar essa relação entre valores da arte moderna na arte contemporânea, a autora cita vários estados da arte atual, separando-os em três grupos.
O primeiro é composto pelos movimentos da arte conceitual, do minimalismo e da land art, e tem influências de Marcel Duchamp. O segundo – figuração livre, action painting e body art – reage às proposições duchampianas. O terceiro, composto basicamente pela arte tecnológica, ocupa-se da arte relacionada às tecnologias da comunicação e, posteriormente, computacionais.
Depois da arte conceitual – ligada ainda à linguagem e a uma ausência da forma (embora a linguagem também seja uma forma), o minimalismo resgata o trabalho com as formas e as relaciona com o espaço e o tempo. Essa relação vai se acentuar e se tornar visível com as propostas efêmeras de ocupação de grandes espaços naturais pela land art.
A emoção, o fazer pictórico, o gestual e o corpo retornam com os movimentos do segundo grupo. A estética aproxima-se novamente da atividade artística e questões importantes são resgatadas nesse momento, tais como o ‘espaço da obra’ discutido por Tassinari e por Mammì. O artista volta a ser o autor e o senhor de sua criação. Apesar desse regresso, Cauquelin afirma que a influência de Duchamp permanece, que a linearidade histórica é negada, a simultaneidade das práticas é assumida e as redes são amplamente exploradas. Percebe-se, então, que as práticas atuais carregam muitos resquícios de pensamentos anteriores. Há uma relação do atual com o passado, onde muitos valores e práticas são negados, embora alguns fragmentos sejam escolhidos, mantidos e reproduzidos dentro da rede. Talvez essa incapacidade de neutralizar o passado seja o empecilho para se construir um melhor entendimento do que acontece na arte hoje. A arte mudou, mas as formas de abordá-la, estudá-la, mostrá-la, criticá-la ainda são as mesmas utilizadas desde as vanguardas.
O terceiro grupo, composto pela arte tecnológica, estabelece algumas condições e a principal delas é o trabalho em conjunto frente à dificuldade em se lidar com a especificidade tecnológica, o que novamente abala a unicidade do autor. Ela divide esse grupo em dois: o de práticas tradicionais e mistas (correio, postais, instalações com imagens de vídeo, televisão, instalações pictóricas) e o de práticas computacionais (computador como suporte de imagens, instrumento de composição e uso de softwares). Segundo a autora, ao menos no momento em que produziu seu livro (por volta de 1992), as ‘tecnoimagens’ e a arte computacional em si não eram passíveis de uma análise dentro do que vinha sendo desenvolvido no campo da arte. Hoje essa realidade é diferente; a arte computacional cada vez mais conquista seu espaço e existem cada vez mais atores em processo de construção de conhecimento nessa área: críticos, marchands, patrocinadores e, um novo componente dessa cadeia, o acadêmico universitário.
A Universidade, talvez num processo de ‘republicização’ da instituição de arte, passa a produzir a informação, portanto a concentrar o poder de avaliar o que é arte ou não. Pode-se dizer que a Universidade transformou-se em mais um tentáculo do Sistema de Arte. Vale lembrar que nesse jogo de valores prevalece mesmo a nominação: quanto mais renomada for a Universidade, maior poder e credibilidade terão os acadêmicos-críticos-marchands-curadores. Essa é mais uma demonstração da força da circularidade daquilo que cai na rede.
Bibliografia Auxiliar
MAMMÌ, Lorenzo. À margem. Ars: publicação do Dep. De Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da USP. São Paulo, vol. 1, n. 3, 1º. Semestre de 2004, pp. 80-101. MAMMI, Lorenzo. Mortes recentes da arte. Novos Estudos, São Paulo, n.60, julho de 2001. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Manoela Afonso é Mestranda em Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás e Bolsista do CNPq. E-mail: afonso.manoela(arroba)gmail.com [www.manoelaafonso.zip.net]
Resenha inédita, publicada no Blog Intermídias no dia 14 de maio de 2007. Todos os direitos reservados do autor. {Referência para citação deste texto: Afonso, Manuela. "A Circularidade e as Redes Comunicacionais da Arte Contemporânea". In: Blog Intermídias, 14/05/2007, [http://intermidias.blogspot.com/2007/05/circularidade-e-as-redes.html] data de acesso: }.
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Para organizar o seu pensamento, Cauquelin dispõe o assunto didaticamente em dois pólos: o da arte moderna e o da arte contemporânea. Para confrontar tais pólos e melhor analisar as características que definem cada um deles, a autora se utiliza do Sistema da Arte como pano de fundo dessa discussão.
Na primeira parte de seu livro, Cauquelin deixa claro ao leitor quais são os dois regimes da arte por ela propostos: o regime do consumo e o da comunicação, ligados à arte moderna e à arte contemporânea, respectivamente. O período de ruptura entre tais regimes é analisado através de figuras chamadas embreantes que, resumidamente, pode-se entender como indivíduos que demonstram práticas e pensamentos à frente de seu tempo.
A argumentação teórica dividida em ‘regimes da arte’ não só ajuda a visualizar possíveis características determinantes da arte moderna e contemporânea, como também revela um pouco a respeito do funcionamento do Sistema da Arte e de suas modificações com o passar das décadas. À medida que Cauquelin relaciona arte e mercado, os lugares que cada um dos componentes desse Sistema ocupa ficam mais evidentes, são confrontados e revelam suas adaptações à nova estrutura econômica da sociedade.
Quem é o produtor de arte? Quem a comercializa? Quem a coleciona? Quem define o que é ou não é arte? Quem a consome? É em meio a tantas questões inquietantes que Cauquelin procura caracterizar a arte contemporânea e desvendar o meio em que ela circula.
OS REGIMES DA ARTE
1. Regime do Consumo
Cauquelin, de início, procura distinguir rapidamente os termos ‘moderno’, ‘modernismo’ e ‘modernidade’, mesmo porque ao fazer isso ela define o seu ponto de partida temporal, que é por volta de 1860. A princípio, a autora associa ao termo ‘moderno’ as seguintes características: o gosto pela novidade; a recusa do passado; a posição ambivalente de uma arte ao mesmo tempo efêmera e eterna.
É nesse período e devido a tais características que a Academia de arte se depara com o fim de sua hegemonia. Essa decadência é também um fator resultante, em parte, das mudanças econômicas sofridas pela sociedade no final do século XIX e da sua repercussão no campo da arte.
O sistema acadêmico não soube nem desenvolver nem cultivar os diversos mercados potenciais que existiam dentro de um público aumentado de compradores, assim como também não soube, na mesma proporção, encorajar a identificação das individualidades artísticas com esses mercados (WHITE, 1965 apud CAUQUELIN, 2005, p.35).
Sendo assim, é possível deduzir que a recusa à Academia se dá por, pelo menos, dois motivos: a manutenção que ela dava à rigidez artística estabelecida e a falta de adaptação ao novo ritmo econômico industrial. A Academia foi, portanto, renegada pela modernidade, mas o status que ela garantia aos artistas e às obras não era algo a ser descartado. Sucesso, reconhecimento e dinheiro em giro sempre foram fatores de interesse e, se a Academia não podia mais garanti-los, era preciso haver outra instituição que o fizesse e que soubesse lidar com esse novo regime do consumo.
A onipresença do consumo é que rege a arte moderna, por excesso ou por falta, por adesão ou por recusa. Importa, pois, desenhar em grandes traços o regime de consumo geral para posicionar em seguida os atores do campo específico da arte: artistas, intermediários e público (CAUQUELIN, 2005, p. 28).
Tanto o artista quanto o consumidor pertencente às classes sociais em ascensão, eram dependentes desse reconhecimento acadêmico, o qual garantia o que era ‘verdadeiramente’ arte e se ela possuía algum valor. A dependência desse juízo de valor conferiu às novas instituições de arte, já em processo de privatização, um enorme poder de legitimação: elas passaram, cada vez mais, a definir o que deveria ser aceito ou refutado.
Dessa forma, então, instaurou-se o Sistema de Arte com todos os seus atores – marchands, críticos, curadores, colecionadores, conservadores, museus, galerias – os quais, a princípio, possuíam tarefas distintas. Cauquelin, ao longo de seu texto, procura identificar as características de cada uma dessas figuras e as transformações por elas sofridas devido às mudanças na estrutura econômica da sociedade. O crescente processo de industrialização foi o ponto de solidificação do mercado e de fortalecimento do poder das instituições, pois cada vez mais a arte passou a ser tratada como um produto que precisava e deveria ser consumido.
2. Regime da Comunicação
Produção – distribuição – consumo: esse é o esquema tripartite proposto por Cauquelin para se compreender o mercado de bens materiais e simbólicos na modernidade. A virada da era industrial para a era tecnológica resultou numa inevitável mistura de papéis: produtor, distribuidor e consumidor não mais possuem atividades específicas. A lógica da estrutura de consumo foi transformada aos poucos devido aos incrementos tecnológicos que levaram à era da comunicação, sendo que outros profissionais foram sendo agregados ao Sistema da Arte. São eles os especialistas em geração, apresentação e distribuição da informação.
O regime da comunicação proporcionará, então, mudanças significativas e irreversíveis na relação homem-espaço-tempo-consumo e, consequentemente, na relação disso tudo com a arte.
No mundo da comunicação o produto de interesse é a informação. Dessa maneira, a lei que rege a arte passa a ser a mesma que atua na emissão e distribuição da informação. Aquele que dispõe dos meios para passá-la adiante é que será o produtor dentro desse novo regime. O produto gerado agora é o ‘valor’.
Diferentemente do artista da modernidade, o atual produtor lida com os signos – e com a especulação de seu valor – dentro da rede de informação. O artista garante o aspecto visual; ele e sua arte são objetos a serem disponibilizados na rede. E é em cima desses dois elementos (artista e obra) que serão construídos os signos que circularão na rede como informação emblemática da arte contemporânea.
A autora procura destacar alguns pontos - chamados por ela de ‘efetuadores’ – que dão suporte à análise do regime da comunicação. São eles: rede; bloqueio; redundância e saturação; nominação; construção da realidade. A rede – com a conseqüente interação por ela proporcionada – é um elemento de crucial importância para o funcionamento do Sistema da Arte dentro desse novo regime: redes internacionais de artistas, galerias e instituições culturais, interação entre mercados, entre outras estruturas, ligam-se mundialmente graças às redes velozes de informação.
A interatividade permite que as “redes interconectadas se auto-organizem, repercutindo umas nas outras” (CAUQUELIN, 2005, p. 60) o que causa o problema da circularidade e, por conseqüência, a perda da referência de início, fim, origem ou destino da informação; não há mais orientação principal e nem autor definido. “Essas transformações alcançam o domínio artístico em dois pontos: no registro da maneira como a arte circula, ou seja, no mercado (ou continente), e no registro intra-artístico (ou conteúdos das obras)” (Idem, p. 65).
Nessa rede complexa de comunicação, os atores mais ativos são os que possuem a maior quantidade de informação e, de preferência, adquiridas no menor espaço de tempo possível. Embora Cauquelin aponte alguns problemas – como a redundância e a saturação – percebe-se que a rede tornou-se indispensável ao artista e à sua obra. É condição fundamental que o artista contemporâneo seja projetado pela rede, que ele esteja em vários lugares do mundo ao mesmo tempo, que aceite as regras de renovação e individualização permanente propostas por esse novo sistema de circulação da informação. “O artista tem de ser internacional, ou não ser nada; ele está preso na rede ou permanece de fora” (Idem, p. 75).
Mas o artista e sua obra precisam mais que apenas estar na rede; eles têm que, através da nominação, conseguir se sobressair e vencer a saturação provocada pela inevitável circularidade. O paradoxo encontra-se justamente nesse aspecto: a renovação constante é também uma repetição, uma saturação da nominação (uma falência, por repetição, da solução de um problema) e, quando explorada ao extremo, leva a obra e o artista a uma circularidade banalizada, a uma espetacularização praticamente sem volta.
FIGURAS E MODOS DE ARTE CONTEMPORÂNEA
1. Embreantes
Segundo Cauquelin, o embreante é uma figura de ruptura entre o regime do consumo e o regime da comunicação. Mas talvez seja mais adequado considerá-lo como um elemento de transição e não de ruptura, uma vez que a própria autora admite que os embreantes fazem referência a modos temporais, ou seja, à conexão que se operou entre passado e presente.
Apesar de estarem situados historicamente na modernidade, os embreantes escolhidos pela autora – Marcel Duchamp, Andy Warhol e Leo Castelli - são figuras reveladoras de indícios da mudança de um regime, sendo citados até os dias de hoje e provocando o pensamento na atualidade. Segundo Cauquelin (Idem, p. 88), “esses três personagens têm em comum o exercício de uma atividade que responde aos axiomas-chave do regime de consumo”. Devido a tais fatores a autora os coloca inseridos na arte contemporânea.
Marcel Duchamp influencia cada vez mais a arte contemporânea com o passar dos anos. Algumas características de sua arte contribuem para esse fenômeno. São elas: separação entre arte e estética (o que acabou integrando a arte em outras esferas de atividades); mistura de papéis dos agentes da esfera artística (produtor-intermediário-consumidor); abandono da vanguarda e da figura romântica de artista; presença de jogos de linguagem na arte.
Com a sua posição de ‘antiartista’ e com a criação dos ready-mades, Duchamp esvaziou o conteúdo emocional e intencional do artista e da obra. Formas, cores, visões, interpretações da realidade, estilo, não interessam mais. O “fazer à mão” é abandonado e dá lugar a um trabalho com signos, ou seja, Duchamp não oferece novas imagens, mas sim propõe um exercício da arte num sistema de comunicação.
Ao afirmar que qualquer objeto pode ser arte, desde que num determinado momento, Duchamp fortalece o poder da instituição de arte, pois a partir de então “o lugar de exposição torna os objetos obras de arte. É ele que dá o valor estético de um objeto, por menos estético que seja” (Idem, p. 94). O valor não está mais na obra em si, mas no espaço-palco onde é mostrada essa obra. O artista não é mais aquele que cria e executa; é apenas quem mostra, escolhe e utiliza o material, dando-lhe, segundo Cauquelin (Idem, p. 97) um “coeficiente de arte”.
Portanto, há um abandono da idéia de vanguarda e da figura romântica do artista: “o jogo da arte consiste em especular a respeito do valor da simples exposição de um objeto manufaturado” (Idem, p. 100). Os jogos de linguagem e de construção da realidade ganham importância. “Expor um objeto é intitulá-lo” (Idem, p. 101). Sendo assim, a arte deixa de ser emoção para ser algo pensado (a arte restrita ao pensamento foi o que levou Hegel, em meados de 1820, a reconhecer a sua morte).
Andy Warhol, também um embreante, é um exemplo de artista que tratou arte como negócio (business-art) e soube usar muito bem a rede para a viabilização de sua empreitada.
A rede, com a redundância e a saturação; o paradoxo, com o bloqueio em torno de si mesmo; a autoproclamação com o nominalismo; a circulação dos signos dentro da rede sem autor nem receptor; e finalmente o totalitarismo, com a internacionalização do sistema de comunicação. Pois bem, são esses preceitos ou princípios que Warhol vai utilizar da melhor maneira possível (CAUQUELIN, 2005, p. 111).
De desenhista de publicidade e artista pop reconhecido, Warhol transformou-se num empreendedor: via a arte articulada à sociedade e ao mundo dos negócios. Warhol elegeu, enquanto proposta artística, os objetos de consumo para serem mostrados e reproduzidos em larga escala. Sua fascinação por tais objetos era tão grande que ele mesmo se transformou num deles: Warhol fabricou o produto Warhol. Seu nome passou a ser a própria obra que virou uma marca para diversos de seus empreendimentos artísticos: pinturas, filmes, fotografias, exposições, textos.
Diferentemente de Duchamp, para quem o ‘espaço’ era o responsável por determinar o que era arte, Andy Warhol afirma que não é mais esse espaço físico (museu, galeria) que define algo, mas sim, o espaço da comunicação: a rede. O percurso desse artista, segundo a autora, ajuda a vislumbrar uma possível definição para arte contemporânea: um “sistema de signos circulando dentro de redes” (Idem, p. 120).
Segundo Mammí, a partir do momento em que qualquer objeto passa a ser considerado obra, os limites da arte passam ao domínio do campo da filosofia da arte. Duchamp e Warhol foram agentes transformadores do que vinha sendo considerado arte a partir do raciocínio proveniente de uma história linear. Com tal transformação, institui-se o fim da arte proposto por Danto, pois a narrativa linear, o “movimento progressivo rumo a uma consciência sempre maior de seus meios” (MAMMÍ, 2001, p. 79) daria lugar agora a uma arte pós-histórica, a uma não-linearidade da narrativa.
O terceiro embreante, Leo Castelli, foi um galerista que, assim como Andy Warhol, usou a rede para viabilizar seu negócio internacionalmente. Castelli se utilizou de certos aspectos da rede de comunicação como o consenso, o bloqueio e a internacionalização, mas foi o domínio da ‘informação’ que lhe ofereceu a condição para que se tornasse um profissional bem sucedido. Ao invés de estabelecer concorrência, firmou acordos com outras instituições globo afora, documentou todos esses procedimentos, criando uma imensa rede de relacionamento e de informação. A sua fórmula foi garantir o sucesso global dos artistas representados por sua galeria, pois, dessa forma, estaria garantindo também o seu próprio sucesso, num processo cíclico de investidas bem sucedidas dentro de uma concordância entre as principais instituições artísticas do mundo.
2. A atualidade
Após a ação desses embreantes, Cauquelin procura identificar o seu eco na arte atual. A autora constata que é por fragmentos que as proposições dos embreantes são utilizadas hoje na arte. Valores da arte moderna estão presentes na arte contemporânea. A mistura do tradicional à novidade e o olhar para o passado caracterizam esse momento. Para exemplificar essa relação entre valores da arte moderna na arte contemporânea, a autora cita vários estados da arte atual, separando-os em três grupos.
O primeiro é composto pelos movimentos da arte conceitual, do minimalismo e da land art, e tem influências de Marcel Duchamp. O segundo – figuração livre, action painting e body art – reage às proposições duchampianas. O terceiro, composto basicamente pela arte tecnológica, ocupa-se da arte relacionada às tecnologias da comunicação e, posteriormente, computacionais.
Depois da arte conceitual – ligada ainda à linguagem e a uma ausência da forma (embora a linguagem também seja uma forma), o minimalismo resgata o trabalho com as formas e as relaciona com o espaço e o tempo. Essa relação vai se acentuar e se tornar visível com as propostas efêmeras de ocupação de grandes espaços naturais pela land art.
A emoção, o fazer pictórico, o gestual e o corpo retornam com os movimentos do segundo grupo. A estética aproxima-se novamente da atividade artística e questões importantes são resgatadas nesse momento, tais como o ‘espaço da obra’ discutido por Tassinari e por Mammì. O artista volta a ser o autor e o senhor de sua criação. Apesar desse regresso, Cauquelin afirma que a influência de Duchamp permanece, que a linearidade histórica é negada, a simultaneidade das práticas é assumida e as redes são amplamente exploradas. Percebe-se, então, que as práticas atuais carregam muitos resquícios de pensamentos anteriores. Há uma relação do atual com o passado, onde muitos valores e práticas são negados, embora alguns fragmentos sejam escolhidos, mantidos e reproduzidos dentro da rede. Talvez essa incapacidade de neutralizar o passado seja o empecilho para se construir um melhor entendimento do que acontece na arte hoje. A arte mudou, mas as formas de abordá-la, estudá-la, mostrá-la, criticá-la ainda são as mesmas utilizadas desde as vanguardas.
O terceiro grupo, composto pela arte tecnológica, estabelece algumas condições e a principal delas é o trabalho em conjunto frente à dificuldade em se lidar com a especificidade tecnológica, o que novamente abala a unicidade do autor. Ela divide esse grupo em dois: o de práticas tradicionais e mistas (correio, postais, instalações com imagens de vídeo, televisão, instalações pictóricas) e o de práticas computacionais (computador como suporte de imagens, instrumento de composição e uso de softwares). Segundo a autora, ao menos no momento em que produziu seu livro (por volta de 1992), as ‘tecnoimagens’ e a arte computacional em si não eram passíveis de uma análise dentro do que vinha sendo desenvolvido no campo da arte. Hoje essa realidade é diferente; a arte computacional cada vez mais conquista seu espaço e existem cada vez mais atores em processo de construção de conhecimento nessa área: críticos, marchands, patrocinadores e, um novo componente dessa cadeia, o acadêmico universitário.
A Universidade, talvez num processo de ‘republicização’ da instituição de arte, passa a produzir a informação, portanto a concentrar o poder de avaliar o que é arte ou não. Pode-se dizer que a Universidade transformou-se em mais um tentáculo do Sistema de Arte. Vale lembrar que nesse jogo de valores prevalece mesmo a nominação: quanto mais renomada for a Universidade, maior poder e credibilidade terão os acadêmicos-críticos-marchands-curadores. Essa é mais uma demonstração da força da circularidade daquilo que cai na rede.
Bibliografia Auxiliar
MAMMÌ, Lorenzo. À margem. Ars: publicação do Dep. De Artes Plásticas da Escola de Comunicação e Artes da USP. São Paulo, vol. 1, n. 3, 1º. Semestre de 2004, pp. 80-101. MAMMI, Lorenzo. Mortes recentes da arte. Novos Estudos, São Paulo, n.60, julho de 2001. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Manoela Afonso é Mestranda em Cultura Visual na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás e Bolsista do CNPq. E-mail: afonso.manoela(arroba)gmail.com [www.manoelaafonso.zip.net]
Resenha inédita, publicada no Blog Intermídias no dia 14 de maio de 2007. Todos os direitos reservados do autor. {Referência para citação deste texto: Afonso, Manuela. "A Circularidade e as Redes Comunicacionais da Arte Contemporânea". In: Blog Intermídias, 14/05/2007, [http://intermidias.blogspot.com/2007/05/circularidade-e-as-redes.html] data de acesso: }.
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