9 de outubro de 2008

O olhar japonês de uma cultura e dialeto em vias de desaparição na Bolívia retratado no filme Pachamama

A primeira impressão que se tem do filme Pachamama (El regalo de la pachamama, 2008) do cineasta japonês Toshifumi Matsushita é que se trata de um filme ficcional clássico ancorado numa narrativa cinematográfica tradicional. A estória é de uma comunidade de Quíchua, no sul da Bolívia, onde o menino Q’unturi (Christian Huaygua) trabalha com o pai na criação de lhamas e na extração de sal. É um filme sobre a adolescência de um menino e sua passagem à vida adulta, a experiência do sofrimento, a aprendizagem da cultura e o surgimento do desejo amoroso, o que poderia se passar em qualquer lugar do mundo, afirma o diretor. Perguntei como ele define o filme? Matsushita tentou se esquivar dizendo ser esta uma pergunta difícil de responder, pois prefire que o público o defina por si mesmo. Finalmente respondeu dizendo: um docu-drama.

O tratamento do filme é quase antropológico, pois se baseia nas pesquisas e andanças de Matsushita durante quatro anos nas terras bolivianas. A cada viagem e contato com as comunidades, o roteiro foi se modificando e acrescentando antigos mitos e lendas – mistificando ainda mais o cotidiano local. Ele criou assim um roteiro de situações “épicas e ancestrais” e pediu às pessoas da região, que se tornaram atores do filme, para improvisarem os diálogos – já que o diretor não fala quíchua e pouquíssimo espanhol. Toda a equipe de produção do filme foi composta também por técnicos locais somando assim mais uma das subjetividades dos bastidores da trama.

O grande encontro entre essas duas culturas (boliviana e japonesa), aparentemente distantes, reside na maneira como elas interagem com a natureza. Segundo o diretor, existe uma grande espiritualidade que vem do contato e do respeito com a terra, daí o título, Pachamama – terra mãe. “Eu espero que esse menino passe a sua cultura e língua Quíchua para as gerações seguintes” afirmou Matsushita.

O filme que passou recentemente em Vancouver no Festival Internacional de cinema quando Matsushita concedeu esta entrevista, seguiu logo após para a Mostra de cinema de São Paulo.

5 de outubro de 2008

"Resposta a uma questão sobre o sujeito" por Gilles Deleuze


Um conceito filosófico cumpre uma ou várias funções, nos campos de pensamento que são, também eles, definidos por variáveis interiores. Há, enfim, variáveis exteriores (estados de coisas, momentos da história) em uma relação complexa com variáveis internas e funções. Significa dizer que um conceito não nasce e não morre por prazer, mas na medida em que novas funções em novos campos relativamente destituem-no. É por isso também que não é nunca interessante criticar um conceito: é melhor construir novas funções e descobrir novos campos que o tornem inútil ou inadequado.

O conceito de sujeito não escapa a essas regras. Ele já cumpriu suas funções: inicialmente, uma função de universalização, em um campo no qual o universal não era mais representado por essências objetivas, mas por atos poéticos ou lingüísticos. Nesse sentido, Hume assinala um momento importante na filosofia do sujeito, porque ele invoca atos que ultrapassam o dado (o que se passa quando digo “sempre” ou “necessário”?). O campo correspondente, desde então, não é mais, absolutamente, o do conhecimento, mas, antes, o da “crença”, como nova base do conhecimento: sob quais condições uma crença é legítima, segundo a qual eu digo mais do que aquilo que me é dado? Em segundo lugar, o sujeito cumpre uma função de individuação, em um campo no qual o indivíduo não pode ser uma coisa nem uma alma, mas uma pessoa, viva e vivida, falante e falada (“eu-tu”). Esses dois aspectos do sujeito, o Eu universal e o Mim individual, estão necessariamente ligados? Mesmo ligados, não existe conflito entre eles, e como resolver esse conflito? Todas essas questões animam aquilo que se pode chamar de filosofia do sujeito, já em Hume, mas também em Kant, que confronta um Eu como determinação do tempo e um Mim como determinável no tempo. Em Husserl ainda, questões análogas se porão na última das Meditações cartesianas.

Pode-se atribuir novas funções e variáveis capazes de causar uma mudança? Trata-se de funções de singularização que invadiram o campo do conhecimento, em favor de novas variávies de espaço-tempo. Por singularidade, é preciso não entender alguma coisa que se oponha ao universal, mas um elemento qualquer que pode ser prolongado até a vizinhança de um outro, de maneira a formar uma junção: trata-se de uma singularidade no sentido matemático. O conhecimento e mesmo a crença tendem, pois, a ser substituídos por noções como “agenciamento” ou “dispositivo”, que designam uma emissão e uma repartição de singularidades.

São essas emissões, do tipo “lance de dados”, que constituem um campo transcendental sem sujeito. O múltiplo se torna o substantivo, multiplicidade, e a filosofia à teoria das multiplicidades, que não remetem a nenhum sujeito como unidade prévia. O que conta não é mais o verdadeiro nem o falso, mas o singular e o regular, o remarcável e o ordinário. É a função de singularidade que substitui a de universalidade (em um novo campo que não tem mais utilidade para o universal). Vê-se isso até mesmo no direito: a noção jurídica de “caso”, ou de “jurisprudência”, destitui o universal, em favor de emissões de singularidades e de funções de prolongamento. Uma concepção do direito fundada na jurisprudência dispensa todo “sujeito” de direitos. Inversamente, uma filosofia sem sujeito apresenta uma concepção do sujeito fundada na jurisprudência.

Correlativamente, talvez, se impuseram tipos de individuação que não eram mais pessoais. Pergunta-se sobre o que faz a individualidade de um acontecimento: “uma vida, uma estação, um vento, uma batalha, cinco horas da tarde...”. Pode-se chamar de hecceidadade ou ecceidade essas individuações que não constituem mais pessoas ou mins. E surge a questão de saber se não somos essas heceidades em vez de mins. A filosofia e a literatura anglo-americana são, a esse respeito, particularmente interessantes, porque elas se destacam, freqüentemente, por sua incapacidade por encontrar um sentido atribuível à palavra “mim”, exceto o de uma ficção gramatical. Os acontecimentos colocam questões de composição e de decomposição, de velocidade e de lentidão, de longitude e de latitude, de potência e de afetos muito complexas.

Contra todo personalismo, psicológico ou lingüístico, eles implicam a promoção de uma terceira pessoa, e mesmo de uma “quarta” pessoa do singular, não-pessoa ou Ele, na qual nos reconhecemos melhor, nós mesmos e nossa comunidade, do que em vãs trocas entre um Eu e um Tu. Em suma, cremos que a noção de sujeito perdeu muito de seu interesse em favor de singularidades pré-individuais e de individuações não-pessoais. Mas, precisamente, não é suficiente opor os conceitos entre si para saber qual é o melhor. É preciso confrontar os campos de problemas aos quais eles respondem, para descobrir sob quais forças os problemas se transformam e exigem, eles próprios, a constituição de novos conceitos. Nada do que os grandes filósofos escreveram sobre o sujeito envelhece, mas esta é a razão pela qual nós temos, graças a eles, outros problemas a descobrir, em vez de efetuar “retornos” que mostrariam apenas nossa incapacidade em segui-los. A situação da filosofia não se distingue, aqui, fundamentalmente, da situação das ciências e das artes.

Gilles Deleuze

Tradução de Tomaz Tadeu da Silva


In Gilles Deleuze. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003. Org. de David Lapoujade. P. 326-328.

Nota da edição original: O texto original datilografado é datado de fevereiro de 1988. O texto foi publicado, inicialmente, em inglês, em uma tradução de Julien Deleuze para a revista Topoi, setembro de 1988, p. 111-112, sob o título “A philosophical concept...”, antes de ser retraduzido para uma revista francesa (o texto original tinha, então, se extraviado).

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