2 de abril de 2011

Gilles Deleuze relembra a recusa de Sartre ao Prêmio Nobel de literatura

Leia o texto de Gilles Deleuze sobre Sartre, escrito em 1964, publicado em Ilha Deserta.

 
Foto: Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre (ao fundo, no centro) e Michel Foucault

“Ele foi meu mestre” (1)
[1964]


Tristeza das gerações sem "mestres". Nossos mestres não são apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade de professores. No momento em que atingimos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar as maneiras de pensar que correspondem à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos. Sabemos que existe apenas um valor de arte e até mesmo de verdade: a "primeira mão", a novidade autêntica daquilo que se diz, a "musiquinha" com a qual aquilo é dito. Sartre foi isso para nós (para a geração que tinha vinte anos no momento da Liberação). Quem, na época, soube dizer algo de novo além de Sartre? Quem nos ensinou novas maneiras de pensar? Por mais brilhante e profunda que tenha sido, a obra de Merleau-Ponty era professoral e dependia daquela de Sartre em muitos aspectos. (Sartre assimilava de bom grado a existência do homem ao não-ser de um “buraco” no mundo: pequenos lagos de nada, dizia. Mas Merleau-Ponty os considerava como dobras, simples dobras e dobramentos. Assim se distinguiam um existencialismo duro e penetrante e um existencialismo mais brando, mais reservado.) E Camus, ai! Ora se tratava de um virtuosismo afetado, ora de uma absurdidade de segunda mão. Camus valia-se de pensadores malditos, mas toda sua filosofia nos conduzia a Lalande e a Meyerson, autores já bem conhecidos dos alunos do terceiro grau. Os novos temas, um certo estilo novo, uma nova maneira polêmica e agressiva de levantar os problemas, tudo isso veio de Sartre. Na desordem e nas esperanças da Liberação, descobria-se, redescobria-se tudo: Kafka, o romance americano, Husserl e Heidegger, os acertos de contas sem fim com o marxismo, o impulso em direção a um novo romance…Tudo passava por Sartre, não apenas porque, sendo um filósofo, possuía um gênio da totalização, mas porque sabia inventar o novo. As primeiras representações de As Moscas, a aparição de O Ser e o nada, a conferência O Existencialismo é um humanismo foram acontecimentos: aprendia-se aí, depois de longas noites, a identidade do pensamento e da liberdade.
Os "pensadores privados" opõem-se, de uma certa maneira, aos "professores públicos". Até mesmo a Sorbonne precisa de uma anti-Sorbonne, e os estudantes só escutam bem seus professores quando têm também outros mestres. Nietzsche, no seu tempo, deixara de ser professor para tornar-se pensador privado: também Sartre o fez, num outro contexto e com uma outra saída. Os pensadores privados têm duas características: uma espécie de solidão que permanece como propriamente sua em qualquer circunstância; mas também uma certa agitação, uma certa desordem do mundo, na qual eles surgem e falam. Além do mais, só falam em seu próprio nome, sem "representar" nada; e solicitam presenças brutas no mundo, potências nuas que de modo algum são "representáveis". Já em Que é a literatura? Sartre traçava o ideal do escritor: "O escritor retomará o mundo tal e qual, todo nu, todo suado, todo fedido, todo cotidiano, para apresentá-lo às liberdades fundado sobre uma liberdade… Não é suficiente conceder ao escritor a liberdade de dizer tudo! É preciso que ele escreva a um público que tenha a liberdade de mudar tudo, o que significa – além da supressão das classes – a abolição de toda ditadura, a renovação perpétua dos cargos, a derrubada contínua da ordem – a partir do momento em que ameaça se fixar. Em uma só palavra, a literatura é essencialmente a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente”(2). Desde o início Sartre concebeu o escritor sob a forma de um homem como os outros, dirigindo-se aos outros do ponto de vista único de sua liberdade. Toda sua filosofia se inseria num movimento especulativo que contestava a noção de representação, a própria ordem da representação: a filosofia mudava de lugar, abandonava a esfera do juízo, para se instalar no mundo mais colorido do "pré-judicativo", do "sub-representativo". Sartre acaba de recusar o prêmio Nobel. Continuação prática da mesma atitude, horror à idéia de representar algo praticamente, ainda que seja dos valores espirituais ou, como ele, diz, de ser institucionalizado.
O pensador privado precisa de um mundo que comporte um mínimo de desordem, mesmo que seja apenas uma esperança revolucionária, um grão de revolução permanente.  Em Sartre, há uma espécie de fixação na Liberação, nas esperanças desiludidas desse momento. Foi preciso a guerra da Argélia para reencontrar algo da luta política ou da agitação liberatória e, então, em condições muito mais complexas, já que não éramos mais os oprimidos mas, precisamente, aqueles que deviam se voltar contra si mesmos. Ah! juventude. Só resta Cuba e a guerrilha venezuelana. Porém, maior ainda do que a solidão do pensador privado, há a solidão dos que buscam um mestre, dos que gostariam de um mestre e que só poderiam encontrá-lo num mundo agitado. A ordem moral, a ordem "representativa" fechou-se sobre nós. Até o medo atômico tomou ares de um medo burguês. Agora acontece até de propor-se aos jovens Teilhard de Chardin como modelo de pensador. Tem-se o que se merece. Depois de Sartre, não apenas Simone Weil, mas a Simone Weil da imitação. Porém, não é que não existam coisas profundamente novas na literatura atual. Citemos ao acaso: o novo-romance, os livros de Gombrowicz, os contos de Klossowski, a sociologia de Lévi-Strauss, o teatro de Genet e de Gatti, a filosofia da "desrazão" que Foucault elabora… Mas o que falta hoje, o que Sartre soube reunir e encarnar para a geração precedente, são as condições de uma totalização: aquela em que a política, o imaginário, a sexualidade, o inconsciente, a vontade se reúnem nos direitos da totalidade humana. Hoje nós subsistimos com os membros esparsos. Sartre dizia de Kafka: sua obra é "uma reação livre e unitária ao mundo judeo-cristão da Europa central; seus romances são o ultrapassamento sintético de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, de noivo relutante, de tuberculoso etc."(3). Mas o próprio Sartre: sua obra é uma reação ao mundo burguês, tal como o comunismo o põe em questão. Ela exprime o ultrapassamento de sua própria situação de intelectual burguês, de ex-aluno da École Normale, de noivo livre, de homem feio (já que Sartre se apresentava freqüentemente assim)… etc.: tudo isso que se reflete e ecoa no movimento de seus livros.
Falamos de Sartre como se ele pertencesse a uma época acabada. Mas ai! Nós é que estamos já acabados na ordem moral e no conformismo atual. Pelo menos Sartre nos permite uma vaga espera dos momentos futuros, de retomadas nas quais o pensamento se reformará e refará suas totalidades, como potência ao mesmo tempo coletiva e privada. É por isso que Sartre continua sendo nosso mestre. O último livro de Sartre, A crítica da razão dialética, é um dos livros mais belos e mais importantes surgidos nestes últimos anos. Ele dá a O ser e o nada seu complemento necessário, no sentido em que as exigências coletivas completam a subjetividade da pessoa. E quando pensamos novamente em O ser e o nada é para reencontrar o espanto que tínhamos diante em face dessa renovação da filosofia. Agora já sabemos melhor que as relações de Sartre com Heidegger, sua dependência de Heidegger, eram falsos problemas que se apoiavam em mal-entendidos. O que nos tocava em O ser e o nada era unicamente sartreano e dava a envergadura da contribuição de Sartre: a teoria da má-fé, em que a consciência, no seu interior, brincava com a sua dupla potência de não ser o que é e de ser o que não é; a teoria do Outrem, em que o olhar de outrem bastava para fazer o mundo vacilar e "roubá –lo" de mim; a teoria da liberdade, em que esta se limitava a si mesma ao se constituir em situações; a psicanálise existencial, onde se podia reencontrar as escolhas de base de um indivíduo no centro de sua vida concreta. E cada vez, a essência e o exemplo entravam em relações complexas que davam um estilo novo à filosofia. O garçom do café, a moça apaixonada, o homem feio e, principalmente, meu amigo-Pierre-que-nunca-estava-presente, formavam verdadeiros romances na obra filosófica e percutiam as essências ao ritmo de seus exemplos existenciais. Por toda parte brilhava uma sintaxe violenta, feita de rachaduras e de estiramentos, lembrando as duas obsessões sartreanas: os lagos de não-ser, as viscosidades da matéria.
A recusa do prêmio Nobel é uma boa notícia. Finalmente, alguém que não tenta explicar que é um delicioso paradoxo para um escritor, para um pensador privado, aceitar honras e representações públicas. Muitos espertinhos já tentam levar Sartre à contradição: demonstram-lhe sentimentos de despeito, vindo o prêmio tarde demais; objetam dizendo que, de qualquer maneira, ele representa algo;  recordam-lhe que, de todo modo, seu sucesso foi e permanece sendo burguês; deixam entender que sua recusa não é nem sensata nem adulta; mostram-lhe o exemplo daqueles que aceitaram-recusando, dando pelo menos o dinheiro à caridade. Melhor seria não provocar muito, Sartre é um polemista perigoso…Não há gênio sem paródia de si mesmo. Mas qual é a melhor paródia? Tornar-se um velho adaptado, uma autoridade espiritual coquete? Ou então querer ser o abobado da Liberação? Ver-se acadêmico ou sonhar em ser combatente venezuelano? Quem não vê a diferença de qualidade, a diferença de gênio, a diferença vital entre essas duas escolhas ou essas duas paródias? Ao que Sartre é fiel? Sempre ao amigo Pierre-que-nunca-está-presente. É o destino desse autor trazer ar puro quando ele fala, mesmo que seja difícil respirar esse ar puro, o ar das ausências.
. . .
Tradução de
Francisca Maria Cabrera




(1) Arts, 28 de novembro de 1964, p. 8-9. Um mês antes, Sartre tinha recusado o prêmio Nobel de literatura.
(2) Qu’est-ce que la litérature ?Paris, Gallimard, coll. Folio Essais, p.162-163. 
(3) Qu’est-ce que la litérature ?, ibid., p.293

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