Como parte de programação da III Mostra de Produção Independente de Vitória - A vida é curta, será lançado o “Catálogo de filmes: 81 anos de cinema no Espírito Santo”, que conseguiu reunir 192 filmes realizados ou produzidos no Espírito Santo, de 1926 (Bang Bang, de Ludovico Persici) até os anos 2000. Do acervo em si, resta muito pouco. Os filmes do Ludovico Persici, que seriam as obras mais antigas e, portanto, as mais raras, resta apenas uma delas, conhecida como Cenas de Família (1926 a 1929), nome dado pelo laboratório que revelou o filme. Confira as imagens ao lado. O filme foi descoberto pelo pesquisador José Eugênio Vieira na Bahia, e encontra-se atualmente sob os cuidados da Cinemateca Brasileira. O outro filme de Ludovico Bang bang (1926) restam apenas fragmentos dos negativos, que foram incorporados ao documentário O sonho e a máquina, produzido por Ney Modenesi na década de 70, que trata da vida e obra do cineasta.
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9 de agosto de 2007
7 de agosto de 2007
III Mostra Competitiva de Vitória tem Lançamento de DVD e Obras Raras
O projeto engloba Mostra de Arquivo “Obras Raras”; Mostra Competitiva de produções audiovisuais atuais, com 29 filmes; um Catálogo com a produção cinematográfica capixaba da década de 20 aos anos 2000, além de uma Coleção de DVDs com os filmes e vídeos selecionados para a Mostra. Os cineastas Joel Barcellos (foto) e Ramon Alvarado estarão em Vitória (dia 15/8) para participar da mostra.
No primeiro dia da mostra, fragmentos de filmes capixabas de 1920 a 2000 serão exibidos, com trilha sonora composta e executada ao vivo pela banda Solana. Ao longo dos cinco dias haverá também debates, homenagem a dois atores – Paulo DePaula e Branca Santos Neves – e, claro, exibição de filmes raros e atuais. A realização é da Associação Brasileira de Documentaristas e Curtas-Metragistas – seção Espírito Santo (ABD&C/ES), com patrocínio da Secretaria de Cultura de Vitória e da Secretaria de Cultura da Ufes. A ABD&C capixaba é uma associação de realizadores de cinema e vídeo coligada às outras 26 existentes no Brasil.
Tempo e memória
Saskia Sá, presidente da ABD&C-ES, explica que o sentido de “A vida é curta” traduz não só a exibição de curtas locais como também desperta a reflexão sobre o tempo e a memória do cinema capixaba, desde Ludovico Persici (anos 20), passando por Batan (anos 30), o cinema da resistência de Joel Barcellos, Paulo Torre, Luiz Tadeu Teixeira, entre outros, dos anos 60-70, até os atuais como Ricardo Sá e Luíza Lubiana. “Vamos apresentar o que restou da História cinematográfica capixaba, de forma cronológica, na Mostra Obras Raras”, diz Saskia. Dos anos 60, por exemplo, não existem mais cópias nem negativos dos filmes de Toninho Neves e de Ramon Alvarado, só para citar alguns.
Saskia avalia que “temos diversidade audiovisual e queremos que as novas gerações tenham contato com o cinema de outras décadas”. Outra novidade: a partir desta edição, todos os filmes da Mostra Competitiva serão reunidos e editados em formato DVD, uma forma de preservá-los para outras eras e gerações.
“Obras raras”
Com a Mostra “Obras Raras” pretende-se levantar debates sobre restauração, acesso e criação de um acervo histórico, além da distribuição dos produtos audiovisuais locais. Para o coordenador da Mostra Obras Raras, Ricardo Sá, a relevância é proporcional ao desconhecimento que o público tem sobre a história. Afinal, quase um século se passou desde que Ludovico Persici registrou os primeiros registros de que se têm notícia.
Segundo pesquisa da jornalista Patrícia Bravin, “Ludovico Persici entra para a história do cinema capixaba como o primeiro a produzir imagens em movimento no Estado”. Mais do que registrar cenas do cotidiano dos anos 20, produziu e dirigiu um filme de ficção, que pode ser o pioneiro do gênero faroeste no país (Bang bang), conforme Alex Viany, um dos maiores críticos de cinema do Brasil. E mais: Persici usou uma câmera que ele mesmo inventou, utilizando peças de gramofone e de relógios velhos: o “Apparelho Guarany” (sic), com centenas de engrenagens. Bravin explica: “As caixas, por onde passavam as fitas de filme, foram desenvolvidas com antigas latas de manteiga. O equipamento reunia quatro funções: filmar, projetar, copiar e medir o filme. Todas as ações podiam ser executadas com um único mecanismo motor, acionado manualmente ou por força motriz”.
Luiz Gonzales Batan, pai de Ramon Alvarado, é outro nome de destaque na mostra das raridades. Seu filme "Vitória", de 1935, captado em 16mm, que anos depois foi reeditado por seu filho Ramon Alvarado com o título "Um belo dia", estará em cartaz.
Já, nos anos 60, surgiram os cineastas políticos e revolucionários como Ramon Alvarado (O mastro de Bino Santo), Paulo Torre (Kaput) e Luiz Tadeu Teixeira (Ponto e vírgula), entre outros. Foi quando aconteceu o primeiro e único Festival de Cinema Amador Capixaba, produzido por Milson Henriques, em 1967.
Na década de 70, o Espírito Santo teve ainda algumas experiências com longa-metragem (35 mm). Entre os diretores da época, pode-se citar Joel Barcellos (Paraíso no inferno). Dos anos 80, a mostra das raridades exibe "Sinais de fascismo", de Sérgio de Medeiros, "Passo a passo com as estrelas", de Marcel Cordeiro, entre outros.
Seguindo a ordem cronológica, nos anos 80, os documentários também ganharam força com trabalhos de Orlando Bomfim e Ramon Alvarado. Nos anos 90, os longas-metragens ganharam visibilidade: Sergio Rezende dirige "Lamarca", Paulo Thiago "Vagas para moças de fino trato", enquanto Amylton de Almeida dirigia "O amor está no ar" – os três com recursos do Bandes –, época em que tanto se badalou o pólo estadual de cinema.
Tanto a Mostra “Obras Raras” quanto o Catálogo envolveu pesquisa em cinematecas, arquivos públicos, entrevistas com realizadores e pesquisadores de cinema. Com essa iniciativa, a ABD-ES pretende recuperar a memória audiovisual do Estado. A idéia é desenvolver políticas específicas para a preservação do patrimônio cinematográfico, além de construir parcerias de novos produtos ou eventos, que se tornem referência para pesquisadores, estudantes, empresários e amantes da sétima arte.
Mostra competitiva
Vinte e nove filmes estão selecionados para a mostra competitiva. As cinco melhores obras serão premiadas, quatro das quais pela comissão julgadora e uma pelo Júri Popular, informa a coodenadora Ursula Dart. A diversidade de múltiplas experiências marca a Mostra Competitiva deste ano. Há desde filmes frutos de oficinas, como os da Oficina Geração, realizações de universitários até os de profissionais mais experientes como Cloves Mendes (Costa Pereira), Ricardo Sá (Enquanto houver fantasia), Luiz Tadeu Teixeira (O ciclo da paixão), além de alguns premiados como Virgínia Jorge (No princípio era o verbo)(foto), Erly Vieira Jr e Fabrício Coradello (Saudosa).
Contatos: Linda Kogure
(3345-7573 e 9944-4130)
(3345-7573 e 9944-4130)
Programação
14 de agosto – terça-feira
19 h – Mostra “Obras Raras” Abertura19h30 – Exibição de montagem de trechos de filmes capixabas de 1920 a 2000 com execução de trilha sonora do grupo "Solana".
20 horas – Debate - Mesa: “Panorama da produção cinematográfica capixaba" com Carla Osório, Milson Henriques, Nenna B, Patrícia Bravin, João Barreto, Luiz Cláudio Ribeiro. Lançamento do catálogo
21 horas – Mostra Competitiva
Manada, de Luiza Lubiana, 12’, 2005 – 35mm
Sinopse: Moça acorda desmemoriada em uma praia deserta. Ouve tambores. Corre até o som e encontra o amor.
O Pé redondo, de Maurício Junior, 25’, 2007 - DVD
Fluxo, de Felipe Dall’Orto, 6’, 2006 - DVD
Auto Vitrato, de Maria Ines Dieuzeide, 2’, 2007 - DVD
Entre Pedras e Pássaros, Oficina Olhares do Mundo, 20’, 2006 - DVD
Costa Pereira, de Cloves Mendes, 35’, 2007 - DVD
15 de agosto - quarta-feira
19 horas – Mostra “Obras Raras”
Vitória em marcha, de Júlio Monjardim, 10', 1953 - 16mm
Kaput, de Paulo Torre, 12’, 1967 - DVD
O Mastro de Bino Santo, de Ramon Alvarado, 10’, 1971 - DVD
Ponto e Vírgula, de Tadeu Teixeira, 6’, versão 1979 - DVD
Itaúnas, desastre ecológico, de Orlando Bomfim, 8’, 1979 - 16mm
20 horas – Debate - Mesa: “Por uma memória do cinema capixaba” com Anna Saiter, Joel Barcellos, Luiz Tadeu Teixeira, Ramon Alvarado, Orlando Bomfim e Ricardo Sá como mediador.
21 horas – Mostra Competitiva
No princípio era o verbo, de Virgínia Jorge, 18’, 2005 - 35mm
Sinopse: É uma fábula composta por três estórias que se fundem num vai e vem lírico e bem humorado, procurando refletir sobre o conceito de verdade e nossa busca pelas explicações de fenômenos cotidianos.
O interrogatório, de Gui Castor, 8’, 2007 - DVD
Em busca do ZZZ, de Luiza Lubiana e Jean R., 8’, 2001 - DVD
Eve, de Sem-Tao Park, 3’, 2006 - DVD
Dona Maria, muito prazer, de Iza Rosemberg e Marcela Biazatti, 5’, 2006 - DVD
Os arquivos secretos de Amylton, de Hudson Moura, 55’, 2005 - DVD Sinopse: O crítico e diretor de cinema Amylton de Almeida deixa cinco cartas escritas e guardadas em segredo em função da gravidade de sua saúde. Os arquivos secretos de Amylton colhe depoimentos dessas cinco pessoas (Irá de Almeida, Mariléia de Almeida, Jeanne Bilich, Sidemberg Rodrigues e Nelmir Schneider) dez anos depois. O filme alterna as entrevistas com trechos dos filmes mais importantes da carreira do cineasta. Direção: Hudson Moura. Assistente de direção: Suely Soares. Imagens e edição: Ronaldo Rosemberg (Caxote).
23 horas - Sessão Especial “Obras Raras”
Paraíso no inferno, de Joel Barcellos, 72’, 1977 - 35mm
16 de agosto - quinta-feira
19 horas – Mostra “Obras Raras”
Refluxo, de Sérgio de Medeiros, 33’, 1986 - DVD
Rendam-se terráqueos, de José Antonio Chalhub, 11’, 1984 - DVD
Éden Dionisíaco, direção coletiva, 5’, 1987 - DVD
Janelas, de Ricardo Nespoli, Renzo Pretti e Lu Aurich, 12’, 1987 - DVD
20 horas - Debate - Mesa “O vídeo como expressão de movimento coletivo nos anos 80”. Com Cleber Carminatti, José Antônio Chalhub, Ernandes Zanon, Ricardo Néspoli e Saskia Sá, e Rosana Paste como mediadora.
21 horas – Mostra Competitiva
O evangelho segundo Seu João, de Eduardo Souza Lima, Leonardo Gomes e João Moraes 17’, 2006 - 35mm
Saudosa, de Erly Vieira Jr e Fabrício Coradello, 15’, 2005 - 35mm
Sinopse: Nem tudo em Saudosa é ficção. A protagonista é uma cozinheira e poetisa de uma cidade do interior, que teve um caso de amor com um menino de 12 anos, verdadeiro muso de seus versos.
Shuma, de Patrick Reis, 6’, 2003 - DVD
Edmilson, Negão, de Jair Campos, 18’, 2006 - DVD
Sinopse: Narra vida e morte de Edmilson Candido Rosário, o contraventor que desafiou a sociedade e o poder público nos anos 80. As entrevistas relatam fatos que levaram Edmilson a ser comparado ao lendário Robin Hood pela população das favelas da época. Um dos entrevistados do documentário é o veterano jornalista Pedro Maia.
Maia, de Orlando Lemos e Gui Castor, 5’, 2006 - DVD
Batei, lavadeiras! Batei!, do Instituto Geração, 10’, 2006 - DVD
Nicole, de Gabriel Perrone, Gui Castor, Nicholas Augusto Baeta Costa, 22’, 2007 - DVD
23 horas - Sessão Especial “Obras Raras”
Sinais de Fascismo, de Sérgio Medeiros, 78’, 1980 - DVD
17 de agosto - sexta-feira
19 horas – Mostra “Obras Raras”
Solidão Vadia, de Ricardo Sá, 17’, 1996 - 16mm
A Lenda de Proitnier, de Luiza Lubiana, 21’, 1994 - 16mm
Passo a passo com as estrelas, de Marcel Cordeiro, 19', 1995 - 16mm
20 horas – Debate - Mesa “Perspectivas de produção e difusão para o audiovisual capixaba” com Luiza Lubiana, Luciana Vellozo, Margarete Taqueti, Solange Lima, Claudino de Jesus e Saskia Sá como mediadora.
21 horas – Mostra Competitiva
O ciclo da paixão, de Tadeu Teixeira, 15’, 2001 - 35mm
Enquanto houver fantasia, de Ricardo Sá, 30’, 2007 - 35mm
Sinopse: paródia da série de TV A ilha da fantasia, desta vez ambientada na capital do Espírito Santo. Narra a visita de 2 adolescentes que se envolvem numa aventura macabra e acabam libertando a ilha de uma maldição ecológica. Cinema de bordas.
Último andar, de Yuri Viana, 10’, 2006 - DVD
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho vende, do Grupo Olho da Rua, 4’, 2006 - DVD
Cave Canem, de Heraldo Ferreira, Hugo Reis, Marijana Mijoc, Maria Ines Dieuzeide, 3’, 2007 - DVD
Hora do almoço, de Thiago Coutinho e Jirlan Biazatti, 2’, 2007 - DVD
Esteriótipos, de Rodolfo Geraldo Pinto, 1’, 2007 - DVD
E aí?, de Thiago Coutinho, 4’, 2006 - DVD
Mundo marrom, de Rafael Bazilio e Walcleyber Silva, 12’, 2006 - DVD
Cine Alba – A última sessão, Instituto Geração, 14’, 2006 - DVD
Sinopse: Documentário sobre o Cine Alba, de Baixo Guandu, fechado em meados dos anos 90. Era o principal agente cultural da região noroeste do Espírito Santo, fronteira com Minas Gerais.
23 horas - Sessão especial “Obras Raras”
A morte da mulata, de Marcel Cordeiro, 104’, 2002 - 35mm
18 de agosto – sábado
19 horas - EncerramentoLeitura da Carta de Vitória
Homenagem aos atores capixabas Paulo DePaula e Branca Santos Neves
Lançamento da coletânea de DVD’s Premiação da Mostra Competitiva
21 horas –Lançamento do filme A fuga, de Saskia Sá, 17', 2007 - 35mm
"A vigilância do desejo" por Roland Barthes
Em texto de 1980, o teórico francês Roland Barthes destaca "a incerteza do sentido" na cinematografia do diretor italiano Michelangelo Antonioni (foto), falecido no último 30 de julho.
Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; mas e artistas?
Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e - a mais paradoxal de todas - fragilidade.
Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento.
Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós.
Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo contemporâneo e para você mesmo.
Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de uma nova questão.
Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30 anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você tinha de captar de obra em obra.
Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]
Utopista
Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele.
A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância do desejo.
O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.
Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!
E, no entanto, essa verdade sempre só era um sentido. Quantas guerras, quantas repressões, quantos terrores, quantos genocídios para o triunfo de um sentido! O artista, porém, sabe que o sentido de uma coisa não é sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poderíamos dizer, pois o retira da comunidade, do rebanho de fanáticos e arrogantes.
Nem todos os artistas, porém, têm essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista geralmente se chama realismo.
Por isso, quando você declara (numa conversa com Godard) "sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam totalmente realistas", está demonstrando um sentimento justo do sentido; não o impõe, mas não o abole.
Essa dialética dá a seus filmes (vou usar de novo a mesma palavra) uma grande sutileza: sua arte consiste em sempre deixar o caminho do sentido aberto e como que indeciso, por escrúpulo.
É nisso que você realiza com muita precisão a tarefa do artista de que nosso tempo precisa: nem dogmática nem insignificante.
Assim, nos primeiros curtas-metragens sobre os lixeiros de Roma [...], a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se apagar, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, do corpo no trabalho.
No filme "O Grito", o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum lugar consegue confirmar sua identidade e a ambigüidade da conclusão (suicídio ou acidente) levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem.
Essa fuga ao sentido, que não é sua abolição, lhe permite abalar as fixidades psicológicas do realismo: em "O Dilema de uma Vida", a crise já não é de sentimentos, como em "O Eclipse", pois os sentimentos aí são seguros (a heroína ama o marido).
Tudo se urde e dói numa segunda zona, onde os afetos - o mal-estar dos afetos - escapa a essa armação do sentido que é o código das paixões.
Por fim - para abreviar - seus últimos filmes levam essa crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos ("Blow-Up") ou das pessoas ("Profissão: Repórter").
No fundo, ao longo de sua obra, há uma crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido, que se chama destino.
Braque e Matisse
Essa vacilação - eu diria, com mais precisão, essa síncope - do sentido segue caminhos técnicos propriamente cinematográficos (cenário, planos, montagem), que não me cabe analisar, pois não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que a sua obra envolve, além do cinema, todos os artistas do mundo contemporâneo: você trabalha para tornar sutil o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe, fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a vibração.
O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso nestas palavras do pintor Braque: "O quadro está acabado quando apagou a idéia".
Penso em Matisse desenhando uma oliveira, de sua cama e, ao cabo de certo tempo, observando os vazios existentes entre os galhos, para descobrir que, com essa nova visão, escapava à imagem habitual do objeto desenhado, ao clichê "oliveira".
Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor, que capta o objeto figurável no momento raro em que o pleno de sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício.
De certa maneira, sua arte também é uma arte do Interstício ("A Aventura" seria a demonstração cabal dessa afirmação), portanto, de certa maneira também, sua arte tem alguma relação com o Oriente. [...]
Caro Antonioni, tentei dizer com minha linguagem intelectual as razões que fazem de você, para além do cinema, um dos artistas de nosso tempo.
Esse cumprimento não é simples, você sabe, pois ser artista hoje é uma situação não mais sustentada pela bela consciência de uma grande função sagrada ou social; já não é assumir, serenamente, um lugar no Panteão burguês dos Luminares da Humanidade; é, no momento de cada obra, precisar enfrentar em si mesmo os espectros da subjetividade moderna - pois já não se é sacerdote -, que são o desalento ideológico, a consciência social pesada, a atração e a aversão pela arte fácil, o tremor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e o gregarismo.
Cabe-lhe hoje, portanto, aproveitar este momento tranqüilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma coletividade está de acordo no reconhecimento, na admiração, no amor à sua obra. Pois amanhã recomeça o trabalho duro.
Este texto foi escrito para a entrega do prêmio "Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na íntegra na "Cahiers du Cinéma" (maio/1980) e reproduzido em Roland Barthes, "Inéditos Vol. 3 - Imagem e Moda" (ed. Martins Fontes). Tradução de Ivone Benedetti. Reproduzido do Caderno Mais, Folha de São Paulo, 5 de agosto de 2007.
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Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; mas e artistas?
Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e - a mais paradoxal de todas - fragilidade.
Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento.
Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós.
Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo contemporâneo e para você mesmo.
Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de uma nova questão.
Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30 anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você tinha de captar de obra em obra.
Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]
Utopista
Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele.
A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância do desejo.
O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.
Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!
E, no entanto, essa verdade sempre só era um sentido. Quantas guerras, quantas repressões, quantos terrores, quantos genocídios para o triunfo de um sentido! O artista, porém, sabe que o sentido de uma coisa não é sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poderíamos dizer, pois o retira da comunidade, do rebanho de fanáticos e arrogantes.
Nem todos os artistas, porém, têm essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista geralmente se chama realismo.
Por isso, quando você declara (numa conversa com Godard) "sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam totalmente realistas", está demonstrando um sentimento justo do sentido; não o impõe, mas não o abole.
Essa dialética dá a seus filmes (vou usar de novo a mesma palavra) uma grande sutileza: sua arte consiste em sempre deixar o caminho do sentido aberto e como que indeciso, por escrúpulo.
É nisso que você realiza com muita precisão a tarefa do artista de que nosso tempo precisa: nem dogmática nem insignificante.
Assim, nos primeiros curtas-metragens sobre os lixeiros de Roma [...], a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se apagar, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, do corpo no trabalho.
No filme "O Grito", o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum lugar consegue confirmar sua identidade e a ambigüidade da conclusão (suicídio ou acidente) levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem.
Essa fuga ao sentido, que não é sua abolição, lhe permite abalar as fixidades psicológicas do realismo: em "O Dilema de uma Vida", a crise já não é de sentimentos, como em "O Eclipse", pois os sentimentos aí são seguros (a heroína ama o marido).
Tudo se urde e dói numa segunda zona, onde os afetos - o mal-estar dos afetos - escapa a essa armação do sentido que é o código das paixões.
Por fim - para abreviar - seus últimos filmes levam essa crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos ("Blow-Up") ou das pessoas ("Profissão: Repórter").
No fundo, ao longo de sua obra, há uma crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido, que se chama destino.
Braque e Matisse
Essa vacilação - eu diria, com mais precisão, essa síncope - do sentido segue caminhos técnicos propriamente cinematográficos (cenário, planos, montagem), que não me cabe analisar, pois não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que a sua obra envolve, além do cinema, todos os artistas do mundo contemporâneo: você trabalha para tornar sutil o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe, fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a vibração.
O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso nestas palavras do pintor Braque: "O quadro está acabado quando apagou a idéia".
Penso em Matisse desenhando uma oliveira, de sua cama e, ao cabo de certo tempo, observando os vazios existentes entre os galhos, para descobrir que, com essa nova visão, escapava à imagem habitual do objeto desenhado, ao clichê "oliveira".
Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor, que capta o objeto figurável no momento raro em que o pleno de sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício.
De certa maneira, sua arte também é uma arte do Interstício ("A Aventura" seria a demonstração cabal dessa afirmação), portanto, de certa maneira também, sua arte tem alguma relação com o Oriente. [...]
Caro Antonioni, tentei dizer com minha linguagem intelectual as razões que fazem de você, para além do cinema, um dos artistas de nosso tempo.
Esse cumprimento não é simples, você sabe, pois ser artista hoje é uma situação não mais sustentada pela bela consciência de uma grande função sagrada ou social; já não é assumir, serenamente, um lugar no Panteão burguês dos Luminares da Humanidade; é, no momento de cada obra, precisar enfrentar em si mesmo os espectros da subjetividade moderna - pois já não se é sacerdote -, que são o desalento ideológico, a consciência social pesada, a atração e a aversão pela arte fácil, o tremor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e o gregarismo.
Cabe-lhe hoje, portanto, aproveitar este momento tranqüilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma coletividade está de acordo no reconhecimento, na admiração, no amor à sua obra. Pois amanhã recomeça o trabalho duro.
ROLAND BARTHES
Este texto foi escrito para a entrega do prêmio "Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na íntegra na "Cahiers du Cinéma" (maio/1980) e reproduzido em Roland Barthes, "Inéditos Vol. 3 - Imagem e Moda" (ed. Martins Fontes). Tradução de Ivone Benedetti. Reproduzido do Caderno Mais, Folha de São Paulo, 5 de agosto de 2007.
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