GD: Doença.
CP: Logo após terminar o manuscrito de Diferença e repetição em 1968, você foi hospitalizado por causa de uma gravíssima tuberculose. Você, que falou sobre o fato de Nietzsche e Spinoza e os grandes pensadores terem saúde fraca, foi obrigado a conviver desde 1968 com a doença. Você sabia que a tuberculose estava aí há muito tempo? Ou sabia que seu mal estava aí há muito tempo?
GD: O mal, sim. Sabia que eu tinha algum mal há muito tempo. Mas acho que sou como a maioria das pessoas, não tinha muita vontade de saber o que era. E, como a maioria, estava certo de que era um câncer. Então, não tinha pressa de saber. Eu não sabia que era tuberculose até o momento em que comecei a cuspir sangue. Sou um filho da tuberculose, mas foi num momento em que esta doença não apresentava mais perigo algum, pois já havia os antibióticos. Se tivesse sido dez ou três anos antes, teria sido bem mais grave. Se tivesse sido alguns anos antes, eu não teria sobrevivido. Mas não houve problema algum. Além do mais, é uma doença que não comporta dor. Posso dizer que estive muito doente, mas é um grande privilégio ter uma doença sem sofrimento, que é curável, sem dor... Quase não é uma doença. É uma doença, sim, é verdade. Mas, antes, eu nunca fui um homem saudável. Sempre me cansei facilmente. A questão é saber se isso facilita. Se alguém que se propõe, — nem estou falando do sucesso desta empreitada — mas alguém que quer, que gosta e tem como proposta pensar ou tentar pensar, saber se o fato de ter uma saúde fraca lhe é favorável. Não é que se esteja à escuta de sua própria vida, mas pensar é para mim estar à escuta da vida. Não é o que acontece com si próprio. Estar à escuta da vida é muito mais do que pensar em sua própria saúde. Mas acho que uma saúde fraca favorece este tipo de escuta. Há pouco, disse que grandes autores como Lawrence ou Spinoza viram alguma coisa grande, tão grande que era demais para eles. É verdade que não se pode pensar sem estar em uma área que exceda um pouco as suas forças, que o torne mais frágil. Eu sempre tive uma saúde fraca e isso ficou mais claro a partir do momento em que fui tuberculoso. Aí, eu adquiri todos os direitos de uma saúde fraca. Sim, é como você diz.
CP: Mas a sua relação com médicos e medicamentos mudou a partir daí. Você teve que ir a médicos e tomar remédios regularmente, o que foi uma obrigação! Ainda mais você que não gosta muito de médicos.
GD: Não é uma questão pessoal, pois eu conheci muitos médicos encantadores. Mas é um tipo de poder ou a forma como eles manipulam este poder que me parecem detestáveis. Voltamos ao que já falei. É como se a metade das letras comportasse o todo. A maneira como manipulam o seu poder é detestável. Como médicos, eles são detestáveis. Tenho um profundo ódio, não pela pessoa dos médicos que, em geral, são encantadores, mas pelo poder médico e pela maneira como usam este poder. Mas uma coisa me deixou feliz e, ao mesmo tempo, é o que os chateia. Os médicos trabalham cada vez mais com aparelhos e testes, em geral muito desagradáveis para o paciente e que parecem não ter interesse algum, a não ser o de confirmar o diagnóstico. Mas se são médicos talentosos, estes já sabem o diagnóstico e estas provas cruéis só vêm reforçá-lo. Eles fazem uso destas provas de uma forma inadmissível. O que me deixou feliz foi que, sempre que eu tive de passar por um daqueles aparelhos, meu fôlego era fraco demais para ser registrado pela máquina. E quando tiveram de me fazer um... Não sei mais como se chama, mas é um exame do coração que não conseguiram fazer.
CP: Uma ecografia.
GD: Sim, é isso, e tive de passar por este aparelho aí. A minha alegria foi vê-los furiosos naquele momento. Acho que eles odeiam o pobre paciente neste momento. Eles aceitam errar o diagnóstico, mas não aceitam que alguém não possa ser visto pela máquina. Além do mais, eles são muito incultos. Eles são muito... Como diria? Quando eles se metem na cultura, é uma catástrofe. A classe médica é uma gente estranha. O que me consola é que ganham muito dinheiro, mas não têm tempo para gastá-lo ou aproveitá-lo, pois levam uma vida extremamente difícil. É verdade que os médicos não me atraem muito. É claro que isso independe da personalidade deles, mas quando exercem a sua função, tratam as pessoas como cães. Aí, há de fato uma luta de classes, pois se o paciente é rico, eles já são bem mais educados. Menos em cirurgia, que é um caso à parte. Mas os médicos precisariam de uma reforma, pois há de fato um problema.
CP: E os remédios que precisa tomar o tempo todo?
GD: Até que eu gosto. Remédios não me aborrecem. Mas cansam, claro.
CP: Mas não é uma chatice tomar remédios?
GD: Quando são muitos, como atualmente, sim. Aquele monte de remédios de manhã cedo parece uma besteira. Mas eu também sinto que é muito útil. Eu sempre fui a favor dos remédios, até na área de psiquiatria. Sempre fui a favor da farmácia.
CP: E este cansaço do qual falou, que está ligado à doença, e que já existia antes da doença, me faz pensar no texto de Blanchot sobre o cansaço na amizade. O cansaço ocupa grande parte de sua vida. Às vezes, parece que o usa como desculpa para o que o está chateando. Você usa o cansaço. O cansaço lhe é útil.
GD: Eu acho o seguinte... Voltamos ao tema da potência. O que é realizar um pouco de potência, fazer o que se pode, fazer o que está na minha potência? É uma noção bem complexa, pois o que nos torna impotentes, como uma saúde fraca ou uma doença..., precisa-se saber como utilizá-las para, por meio delas, recuperar um pouco da potência. É claro que a doença deve servir para alguma coisa, como todo o resto. Não estou falando apenas em relação à vida, na qual ela deve dar um sensação. Para mim, a doença não é uma inimiga, pois não é uma coisa que dá a sensação da morte, e sim, que aguça a sensação da vida. Não é no sentido de: "Ah, como gostaria de viver e quando estiver curado, vou começar a viver!" Não é nada disso. Não há nada de mais abjeto no mundo do que um bon vivant. Ao contrário, os grandes vivos são pessoas de saúde muito fraca. Voltando à questão da doença, ela aguça uma visão da vida, uma sensação da vida. Quando falo em visão da vida, em vida ou em ver a vida, é ser tomado por ela. A doença aguça e dá uma visão da vida. A vida em toda a sua potência, em toda a sua beleza! Estou seguro disso. Mas como ter benefícios secundários da doença? É muito simples. É preciso usá-la para ser mais livre. Tem de usá-la, senão é muito chato, pois a gente se estafa e isso não deve acontecer. Estafar-se trabalhando para realizar alguma potência vale a pena, mas estafar-se socialmente, eu não entendo. Não entendo um médico estressado porque tem clientes demais. Tirar partido da doença é se libertar das coisas das quais não se liberta na vida normal. Por exemplo, eu nunca gostei de viajar. Nunca pude, nem soube viajar. Respeito os que viajam, mas o fato de ter uma saúde tão frágil me dava muita segurança para recusar qualquer viagem. Sempre foi muito difícil deitar-me muito tarde. A minha saúde não me permitia deitar tarde demais. Não estou falando em relação aos amigos, mas às tarefas sociais. A doença me libera muito. É ótima neste sentido.
CP: Você vê esta fadiga como a doença?
GD: A fadiga é outra coisa. Para mim é: "Hoje, fiz o que pude". A fadiga é biológica. O dia acabou, pronto. Ele pode durar mais por razões sociais, mas a fadiga é a formulação biológica do fim do dia. Não dá para tirar mais nada de você. Visto desta forma, não é um sentimento desagradável. É desagradável se não se faz nada. Aí, é angustiante. Do contrário, é bom. Eu sempre fui sensível aos estados suaves. Estas fadigas suaves. Gosto deste estado quando ele vem no final de alguma coisa. Isso deveria ter um nome em música. Não sei como chamariam isso. É uma coda. A fadiga é uma coda.
CP: Gostaria de que falássemos de sua relação com a comida.
GD: A velhice... A velhice, não. A comida?
CP: Sim, porque você gosta de comidas que parecem lhe dar força e vitalidade, como miolo, lagosta, etc. Mas tem uma relação particular com a comida. Não gosta muito de comer.
GD: Sim, para mim, comer é uma coisa... Se eu tentasse definir a qualidade de comer seria muito chato. Para mim, comer é a coisa mais chata do mundo. Beber, sim! Mas a letra B já passou. Beber é extremamente interessante. Comer nunca me interessou e acho chatíssimo. Comer sozinho é terrível. Comer acompanhado muda tudo, mas não transforma a comida, só me permite suportar comer, mesmo que eu não diga nada, e faz com que seja menos chato. Comer sozinho... Muita gente é assim. Aliás, a maioria das pessoas admite que comer é uma tarefa abominável. Mas é claro que tenho os meus pratos prediletos. Mas são especiais, pois causam um nojo universal. Mas, afinal, eu bem que suporto o queijo dos outros.
CP: Você não gosta de queijo.
GD: Dentre as pessoas que não suportam queijo, eu sou um dos raros a ser tolerante, pois não expulso aquele que come queijo. Sempre suportei este gosto que me parece igual ao canibalismo. Parece-me o horror absoluto. Quando me perguntam de que é composta a minha refeição predileta, que seria uma festa para mim, eu sempre falo de três coisas que me parecem sublimes e, no entanto, são nojentas: língua, miolo e tutano. São coisas muito ricas e seria difícil engolir tudo isso. Mas há alguns restaurantes em Paris que servem tutano. Mas, depois, não posso comer mais nada, pois servem uma grande quantidade. Aliás, é fascinante. O miolo e a língua... Se eu tentasse relacionar com o que dissemos, há uma espécie de trindade. Poderíamos dizer — e seria anedótico — que o cérebro é Deus, é o Pai. Que o tutano é o Filho, já que está ligado às vértebras, que são pequenos crânios, e Deus é o crânio. Pequenos crânios, vértebras... Portanto, o tutano é Jesus. E a língua é o Espírito Santo, que é a própria potência da língua. Eu também poderia arriscar assim: o miolo é o conceito, o tutano é o afecto e a língua é o percepto. Não me pergunte por quê, mas sinto que são trindades. É, esta seria uma refeição fantástica para mim. Não sei se já tive os três ao mesmo tempo. Talvez em algum aniversário. Alguns amigos teriam feito uma refeição destas para mim. Uma festa!
CP: Mas não pode comer as três coisas...
GD: Seria demais!
CP: ... pois fala de sua velhice todos os dias.
GD: A velhice! Alguém soube falar da velhice. Foi Raymond Devos. Muitas outras coisas foram ditas, mas ele disse o melhor para mim. Acho que a velhice é uma idade esplêndida. Claro que há algumas chateações, tudo fica mais lento, nos tornamos lentos. O pior é quando alguém lhe diz: "Mas não é tão velho assim!" Não entende o que é uma queixa. Estou me queixando dizendo "Ah, estou velho!". Ou seja, invoco as potências da velhice. E aí, alguém me diz, com a intenção de me consolar: "Não está tão velho assim". Eu daria uma bengalada nele! Logo quando estou em plena queixa da minha velhice, não venham me dizer: "Até que não é tão velho assim". Pelo contrário, deviam dizer: "Está velho mesmo!" Mas é uma alegria pura. Fora esta lentidão, de onde vem esta alegria? O que é terrível na velhice? Não é brincadeira. É a dor e a miséria. Não é a velhice em si. O que é patético, o que torna a velhice algo triste são as pessoas pobres que não têm dinheiro para viver, nem um mínimo de saúde necessário e que sofrem. Isso é que é terrível. E não a velhice! A velhice não é um mal em si. Com dinheiro suficiente e um mínimo de saúde, é formidável. E por que é formidável? Primeiro, porque, na velhice, sabe-se que chegou lá. O que é muito! Não é um sentimento de triunfo, mas chegou lá. Chegou lá em um mundo cheio de guerras, de vírus malditos e tudo o mais. Mas conseguiu atravessar tudo isso, os vírus, as guerras e todas estas porcarias. Esta é a hora em que só há uma coisa: ser! O velho é alguém que é. Ponto final. Podem dizer que é um velho rabugento, etc. Mas ele é. Ele adquiriu o direito de ser. Afinal, um velho pode dizer que tem projetos. É verdade e não é. São projetos, mas não da forma como alguém de 30 anos tem projetos. Espero escrever estes dois livros, um sobre a Literatura e outro sobre a Filosofia. Mas, mesmo assim, estou livre de qualquer projeto. Estou livre de projetos. Quando se é velho, deixa-se de ser suscetível. Não há mais suscetibilidades, não há mais decepções fundamentais. Estamos muito mais desinteressados. Amamos as pessoas de fato pelo que elas são. Acho que afina a percepção. Vejo coisas que não via antes, percebo elegâncias às quais eu não era sensível. Agora, eu as vejo melhor, porque olho para alguém pelo que ele é, quase como se eu quisesse carregar comigo uma imagem dele, um percepto ou tirar da pessoa um percepto. Tudo isto torna a velhice uma arte. Os dias passam numa velocidade impressionante com a escansão, a fadiga. A fadiga não é uma doença, é outra história. E também não é a morte. Eu repito: é um sinal de que o dia acabou. Com a velhice, existem algumas angústias, mas basta evitá-las. Elas são fáceis de serem esconjuradas. Elas são como os lobisomens ou os vampiros, é só não estar na frente de um. Gosto desta idéia. Não se deve estar sozinho à noite quando começa a esfriar, pois somos lentos demais para poder fugir. Então, são coisas a evitar. A grande maravilha é que as pessoas deixam a gente de lado, a sociedade deixa a gente de lado. Ser deixado de lado pela sociedade é uma alegria tamanha! Não que a sociedade tenha me importunado muito, mas quem não tem a minha idade ou não está aposentado não sabe a alegria que é ser deixado de lado pela sociedade. Os velhos que eu ouço se lamentando são aqueles que não queriam ser velhos, que não suportam a aposentadoria. Não sei por quê. Que leiam romances! Pelo menos, descobririam alguma coisa. Eles não suportam. Eu não acredito, com exceção de alguns casos japoneses, naqueles aposentados que não conseguem encontrar alguma ocupação. É uma maravilha ser deixado de lado. Basta sacudir-se um pouco para que tudo caia. Caem todos os parasitas que você carregou a vida inteira. E o que resta à sua volta? Só as pessoas que ama e que o suportam e o amam também. O resto deixou você de lado. Estou falando de mim. Mas fica muito difícil quando querem trazê-lo de volta. Não suporto isso. Eu só conheço a sociedade através do aviso de chegada da aposentadoria todo mês. Do contrário, sei que sou um desconhecido para a sociedade. O problema é quando alguém acredita que eu ainda faço parte dela e que me pede uma entrevista. No nosso caso atual, é diferente, pois faz parte de um sonho de velhice. Mas quando alguém quer me entrevistar, tenho vontade de dizer: "Tá maluco? Você não sabia que sou um velho e fui deixado de lado pela sociedade?" Mas é bom. Acho que estão confundindo as coisas: o problema não é a velhice, mas a miséria e o sofrimento. Mas quando se é velho, miserável e sofredor, aí, não há palavras para dizer o que é. Mas um velho simplesmente, que é apenas velho, é o ser.
CP: Mas como está doente, cansado e velho, fazendo a devida distinção entre as três coisas, deve ser difícil para aqueles que o cercam e que não estão doentes, cansados, nem velhos como você. Para seus filhos e sua mulher?
GD: Meus filhos... Meus filhos, não há muito problema. Poderia haver algum problema se eles fossem menores, mas como já são grandes, vivem a sua vida e eu não dependo deles, não há problema algum, a não ser problemas afetivos quando eles pensam: "Ele parece cansado mesmo". Mas acho que não há um problema grave com os filhos. E com Fanny, acho que também não é um problema. Mesmo se para ela... Não sei... É difícil imaginar o que teria feito a pessoa que ama se tivesse vivido outra vida. Suponho que Fanny teria gostado de viajar. Ela certamente não viajou como talvez tenha desejado. Mas o que ela descobriu que não teria descoberto se tivesse viajado? Como ela teve uma formação literária muito forte, quantas coisas ela descobriu em romances esplêndidos que valem por mil viagens? Claro que há problemas, mas estão acima da minha compreensão.
CP: Para terminar, quando fala de seus projetos, como o livro sobre a Literatura e o seu último livro O que é a Filosofia?, o que há de divertido em abordá-los estando velho? Você disse que talvez não os realizasse, mas que era divertido.
GD: É uma coisa maravilhosa, sabe? Primeiro, há uma evolução. Quando se é velho, a idéia do que deseja fazer fica cada vez mais pura, no sentido de que fica cada vez mais refinada. É exatamente como as famosas linhas de um desenhista japonês. Linhas muito puras. Parece não ter nada, só uma linha muito fina. Eu só posso conceber isso como o projeto de um velho. Algo que seja tão puro, tão nada, mas, ao mesmo tempo, seja tudo, seja tão maravilhoso! Para conseguir alcançar esta sobriedade, só depois de muito tempo de vida. O que é a filosofia? Acho muito divertido, na minha idade, a idéia de sair em busca do que é a Filosofia, de ter a sensação de que sei e de que sou o único a saber. Se eu morrer atropelado amanhã, ninguém vai saber o que é a Filosofia. São coisas muito agradáveis para mim. Mas eu poderia ter escrito um livro sobre o que é a Filosofia há 30 anos. Eu sei que teria sido muito... Teria sido um livro muito...
CP: Pesado?
GD: Muito diferente do que aquele que concebo agora, em que busco uma certa sobriedade. Poderia ser bom, como poderia não ser. Mas sei que é agora que devo concebê-lo. Antes, eu não saberia. Agora, acho que sou capaz. Mas, de qualquer forma, não seria...
Tweet
18 de novembro de 1994
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário