O meio da rua, o meio do mundo
Bernardo Scartezini
Com a queda do governo fascista de Benito Mussolini, as bombas pararam de cair sobre a Itália. E os cineastas do país puderam voltar à ação, para contar os mortos, contabilizar os estragos e descobrir que a segunda guerra mundial arrasou com seus estúdios de cinema. Enfim, não foi por outro motivo que o cinema italiano deixou as certezas e os madeirites dos sets para ganhar as incertezas e as ruínas da praça pública.
O cinema ganhou as ruas. E muita gente não voltaria mais. A grande revolução italiana, que abriu o caminho para o cinema moderno como o conhecemos, ocupa a tela do CCBB São Paulo. A mostra Olhares Neo-realistas se estende de três a 28 de janeiro – em seguida, se muda para o CCBB de Brasília.
São 36 filmes que esmiúçam não apenas o primeiro momento do assim chamado neo-realismo italiano como ainda trazem alguns antecedentes históricos e vários efeitos colaterais dos anos seguintes. A produção é da cineasta carioca Gisela Cardoso Franco, autora do documentário Palco livre – Uma janela para a MPB e do curta Canção para duas moças. Gisela apresentou nos CCBBs, em 2005, uma detalhada retrospectiva da carreira do ator Paulo José.
O neo-realismo italiano. É arriscado apontar marcos exatos na história do cinema. Mas se há um filme que se estabelece como unanimidade para divisões de águas, eis ''Roma, cidade aberta'', que Roberto Rossellini rodou em 1945. Roma, de fato, tinha acabado de ser aberta pelas tropas aliadas. O desmonte do regime fascista, no final de 1944, isolou a Alemanha de Hitler, que não passaria de abril de 1945.
Roberto Rossellini (1906-1977) nasceu em uma rica família romana, estudou cinema durante o período fascista e chegou a ser assistente de direção de ''Benito Mussollini'', uma cinebiografia assaz simpática ao Duce, assinada pelo conformista Pasquale Prunas. O final da segunda guerra encontrou Rossellini bem-treinado em sets e disposto a dar novas versões à realidade italiana. Seu movimento de ganhar as ruas rendeu ''Roma, cidade aberta'' (foto), onde se permitiu algumas ousadias para a época. Na ausência de figurantes alinhados pelo estúdio, Rossellini filmou o povo nas ruas, os transeuntes, os trabalhadores. Na falta de elenco imposto pelos produtores, Rossellini trabalhou com não-atores (à exceção de Anna Magnani e dois ou três), com gente que não tinha formação teatral nem nada, mas simplesmente tinha o rosto, o físico e a vivência que a ele interessavam.
Natural, portanto, que esse sair para as ruas significasse também uma mudança de olhar. Uma mudança no conteúdo do próprio filme. Não mais épicos, histórias adaptadas do teatro ou dos romances do século 19. Mas a história daquele momento. A pequena história de cada pessoa. As histórias comuns. O cotidiano.
''Roma, cidade aberta'' mostra assim a situação de opressão e incerteza a que ficou submetida a população italiana durante a ocupação alemã. Mostra como, apesar da aliança entre os regimes italiano e germânico, o povo romano – o povo italiano – esteve contrário a essa situação. O filme foi aclamado no Festival de Cannes, levou a láurea máxima e abriu caminho para novas temáticas e novas estéticas no cinema europeu e mundial.
Não é exagero apontar o neo-realismo italiano como precursor da nouvelle vague francesa e do cinema novo brasileiro. Jean-Luc Godard e Glauber Rocha tratavam Rossellini como mestre. Cada um a sua maneira, esses dois cineastas abraçaram discursos de esquerda e essas pequenas grandes liberdades cinematográficas: câmera na rua, luz natural, gente de verdade, pequenas histórias cotidianas.
A escolinha Rossellini
Roberto Rossellini faria ''Paisá'' em 1946 e seguiria uma intensa carreira. Mas claro que não foi o único pioneiro das ruas de Roma. Vittorio De Sica e Luchino Visconti, para citar dos discípulos de primeira hora, logo assumiriam seus projetos e não tardariam a apresentar dois clássicos do neo-realismo, respectivamente ''Ladrões de bicicleta'' (1948) e "Rocco e seus irmãos" (1960; ausente da mostra).
De certa forma, o neo-realismo apresentou mais do que uma opção estética-política naqueles anos 1940, 1950 e início de 1960. Seria praticamente o discurso hegemônico dos novos cineastas italianos, a partir do qual se sentiriam livres para seguir seus próprios caminhos individuais. Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Pier Paolo Pasolini, Alberto Lattuada. Todos eles começaram com filmes francamente sociais, mas aos poucos foram trabalhando suas subjetividades. "Noites de Cabíria" (1955), presente na mostra e recém-lançado em DVD, é o último filme de Fellini ainda distante de seus mares de plástico circenses e de sua poesia delirante e melancólica que atingiria o ápice em clássicos como "A doce vida" e "Fellini Oito e meio". Neste "Noites de Cabíria", Fellini já tem por perto sua adorada Giulietta Masina, já começa a espetar o catolicismo italiano e tem como protagonistas os marginais da sociedade (prostitutas e malandros), um apreço que se seguirá nas obras posteriores e que nasceu não apenas de sua paixão pelo circo mas também do olhar neo-realista.
Fellini, Lattuada e Antonioni chegaram a colaborar entre si nos primeiros filmes, dividindo por vezes a direção ou a assinatura do roteiro. Mas logo cada um seguiria seu estilo. E o neo-realismo seria revisitado por novos realizadores italianos. Principalmente na geração do cinema político dos anos sessenta. Como destaque maior dessa segunda safra neo-realista, o documentário "A batalha de Argel" (de 1966) merece destaque na programação da mostra Olhares Neo-realistas. Nesse filme, Gillo Pontecorvo foi um passo além de Rossellini naquele limite entre ficção-documentário. Rossellini já tinha dado um banho de realidade no cinema, ao colocar a câmera na rua e trabalhar com não-atores. Pois agora Pontecorvo reconstituía cenas de batalha da milícia argelina contra as tropas coloniais francesas usando como atores os protagonistas reais dessas aventuras e usando como palco as ruas onde de fato os choques aconteceram. Um estilo de documentário que influenciou diretamente o "Cabra marcado para morrer" de Eduardo Coutinho.
Vários realismos
Como se vê, as influências do neo-realismo são abrangentes e ainda perceptíveis (pense em Cidade de Deus, por exemplo). Natural que estes Olhares Neo-realistas tragam então frutos extemporâneos e internacionais da proposta neo-realista.
É o caso, por exemplo, do cinema político latino-americano dos anos sessenta. Como "Os inundados" (1961), do argentino Fernando Birri, "O jovem rebelde" (1962), do cubano Julio Garcia Espinosa, e "Histórias da revolução" (1960), do também cubano Tomás Gutiérrez Alea. Uma influência menos clara, mas também presente na temática, pode ser encontrada em "Porto das caixas" (1962), do brasileiro Paulo César Saraceni, raridade de cinemateca. O filme de Saraceni, aliás, é ainda tributário dos dois filmes que Nelson Pereira dos Santos filmou no Rio de Janeiro e serviram como ponto de partida não-oficial do cinema novo: "Rio 40 graus" (1955) e "Rio zona norte" (1957). O mais importante movimento da cinematografia nacional, aliás, será o tema da próxima mostra do CCBB de São Paulo, a Revisão do Cinema Novo, a partir de 31 de janeiro.
Texto de divulgação, fonte: CCBB-SP
Olhares Neo-realistas
De 3 a 28 de janeiro
Ingressos a R$ 4 e R$ 2 (meia)
Endereço: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro
Local: Cinema (69 lugares)
Informações: (11) 3113-3651
E-mail: ccbbsp@bb.com.br
O Neo-Realismo pôs o cinema na rua, filmando em locações, longe dos estúdios e com atores não-profissionais. Utilizou equipes pequenas, poucos equipamentos e desenvolveu uma dramaturgia entranhada no cotidiano do homem comum, dos seus anseios e temores, usando os pequenos dramas da vida real como matéria-prima essencial dos filmes. Com uma duração relativamente curta, e com a intenção de não ser apenas um cinema social, mas sobretudo político, o movimento gerou filmes-marcos que causaram grande impacto sobre outras cinematografias. Essa mostra pretende fazer um breve panorama do cinema neo-realista italiano e abordar, por meio de debate, algumas de suas extensões e influências, motivando assim uma reflexão sobre como o movimento dialogou com outras cinematografias, em especial com a latino-americana.
Confira a programação:
Obsessão , de 03/01/2007 às 14:30 a 28/01/2007 às 12:56
Toni , de 03/01/2007 às 17:00 a 07/01/2007 às 17:00
Aniki bóbó , de 03/01/2007 às 19:00 a 11/01/2007 às 13:00
Roma, cidade aberta , de 04/01/2007 às 15:00 a 16/01/2007 às 18:00
Paisá , de 04/01/2007 às 15:00 a 17/01/2007 às 19:00
A terra treme , de 04/01/2007 às 19:00 a 09/01/2007 às 14:30
Arroz amargo , de 05/01/2007 às 15:00 a 10/01/2007 às 13:00
O caminho da esperança , de 05/01/2007 às 17:00 a 24/01/2007 às 15:00
Alemanha, ano zero , de 05/01/2007 às 19:00 a 18/01/2007 às 17:00
A cidade se defende , de 06/01/2007 às 15:00 a 12/01/2007 às 15:00
O teto , de 06/01/2007 às 17:00 a 26/01/2007 às 13:00
A batalha de Argel , de 06/01/2007 às 19:00 a 21/01/2007 às 15:00
Sem piedade , de 07/01/2007 às 15:00 a 20/01/2007 às 13:00
Os esquecidos , de 09/01/2007 às 19:00 a 16/01/2007 às 14:00
Umberto D , dia 10/01/2007 às 15:00
Porto das caixas , de 11/01/2007 às 17:00 a 27/01/2007 às 19:00
Vítimas da tormenta , de 12/01/2007 às 13:00 a 17/01/2007 às 15:00
Fábula.. Minha casa em Copacabana , de 13/01/2007 às 13:00 a 17/01/2007 às 17:00
O grande momento , de 13/01/2007 às 17:00 a 25/01/2007 às 15:00
Ladrões de bicicleta (foto-cartaz), de 13/01/2007 às 19:00 a 25/01/2007 às 13:00
Rio, zona norte , de 14/01/2007 às 13:00 a 27/01/2007 às 13:00
Agulha na palheiro , dia 14/01/2007 às 15:00
Rio, 40 graus , de 16/01/2007 às 16:00 a 27/01/2007 às 15:00
Vítimas da tormenta , dia 17/01/2007 às 15:00
O sol ainda se levantará , de 18/01/2007 às 13:00 a 21/01/2007 às 19:00
El mégano e O jovem rebelde , de 19/01/2007 às 13:00 a 21/01/2007 às 17:00
Ana e Los inundados , dia 19/01/2007 às 15:00
Morte de um ciclista , dia 19/01/2007 às 19:00
Tire dié e Histórias da revolução , dia 20/01/2007 às 15:00
El verdugo , dia 20/01/2007 às 17:00
Largo viaje , de 20/01/2007 às 19:00 a 23/01/2007 às 15:00
Tire dié e Los inundados , dia 21/01/2007 às 13:00
Cuba baila , dia 23/01/2007 às 13:00
Cronica de um nino solo , dia 23/01/2007 às 17:00
O posto , de 23/01/2007 às 19:00 a 25/01/2007 às 19:00
Ana e Agulha na palheiro , dia 24/01/2007 às 17:00
Nós que nos amávamos tanto , de 25/01/2007 às 17:00 a 28/01/2007 às 19:00
Mamma Roma , dia 26/01/2007 às 15:00
Noites de cabíria , de 26/01/2007 às 17:00 a 28/01/2007 às 13:00
As amigas , de 26/01/2007 às 19:00 a 28/01/2007 às 15:00
Ana e Fábula.. Minha casa em Copacabana , dia 27/01/2007 às 17:00
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10 de janeiro de 2007
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