e entrevista do filósofo concedida à André Flécheux e Mieke Taat [1973] (1)
Se perguntarmos o que é ou o que vem a ser Nietzsche hoje em dia, sabemos muito bem a quem é preciso se dirigir. É preciso se dirigir aos jovens que estão lendo Nietzsche, que estão descobrindo Nietzsche. Quanto a nós, já somos muito velhos na maioria aqui. O que é que um jovem descobre atualmente em Nietzsche, que certamente não é aquilo que minha geração descobriu nele, que certamente não era aquilo que as gerações precedentes tinham descoberto? Como é que acontece que jovens músicos de hoje sintam-se ligados a Nietzsche naquilo que fazem, embora não façam absolutamente uma música nietzscheana no sentido em que Nietzsche a fazia? Como é que ocorre que jovens pintores, jovens cineastas sintam-se ligados a Nietzsche? Que se passa, ou seja, como é que eles recebem Nietzsche? A rigor, e olhando de fora, tudo o que se pode explicar é de que maneira Nietzsche exigiu para si mesmo e para seus leitores, contemporâneos e futuros, um certo direito ao contra-senso. Não um direito qualquer, aliás, porque ele tem suas regras secretas, mas um certo direito ao contra-senso a respeito do qual eu gostaria de me explicar logo mais, e que faz com que a questão não seja comentar Nietzsche como se comenta Descartes, Hegel. Eu digo a mim mesmo: quem é hoje em dia o jovem nietzscheano? Será aquele que prepara um trabalho sobre Nietzsche? É possível. Ou então é aquele que, voluntária ou involuntariamente, pouco importa, produz enunciados particularmente nietzscheanos no decorrer de uma ação, de uma paixão, de uma experiência? Isto também acontece. Pelo que conheço, um dos textos recentes mais belos, mais profundamente nietzscheanos, é o texto em que Richard Deshayes escreve: Viver, não é sobreviver, exatamente antes de receber uma granada durante uma manifestação (2). Talvez os dois casos não se excluam. Talvez se possa escrever sobre Nietzsche e depois produzir enunciados nietzscheanos no decorrer da experiência.
Sentimos todos os perigos que nos espreitam nessa questão: o que é Nietzsche hoje? Perigo demagógico (“os jovens conosco”...) Perigo paternalista (conselhos a um jovem leitor de Nietzsche...) E em seguida, sobretudo, perigo de uma síntese abominável. Toma-se como aurora da nossa cultura moderna a trindade: Nietzsche, Freud, Marx. Pouco importa que todo mundo esteja aqui desarmado de antemão. Marx e Freud talvez sejam a aurora da nossa cultura, mas Nietzsche é claramente outra coisa, ele é a aurora de uma contracultura. É evidente que a sociedade moderna não funciona a partir de códigos. É uma sociedade que funciona sobre outras bases. Ora, se consideramos Marx e Freud, não literalmente, mas o devir do marxismo ou devir do freudismo, vemos que eles se lançaram paradoxalmente numa espécie de tentativa de recodificação: recodificação pelo Estado, no caso do marxismo (“vocês estão doentes pelo Estado, e serão curados pelo Estado”, não será o mesmo Estado); recodificação pela família (estar doente pela família, curar-se pela família, não a mesma família). É isto que realmente constitui, no horizonte da nossa cultura, o marxismo e a psicanálise, como as duas burocracias fundamentais, uma pública, outra privada, cuja meta é operar bem ou mal uma recodificação daquilo que não pára de se descodificar no horizonte. O caso de Nietzsche, ao contrário, não é absolutamente esse. Seu problema está em outro lugar. Através de todos os códigos, do passado, do presente, do futuro, trata-se para ele de fazer passar algo que não se deixa e não se deixará codificar. Fazê-lo passar num novo corpo, inventar um corpo no qual isso possa passar e fluir: um corpo que seria o nosso, o da terra, o do escrito...
Conhecemos os grandes instrumentos de codificação. As sociedades não variam tanto, não dispõem de tantos meios de codificação. Conhecemos três principais: a lei, o contrato e a instituição. Nós os reencontramos muito bem, por exemplo, na relação que os homens mantêm ou mantiveram com os livros. Existem livros da lei, nos quais a relação do leitor com o livro passa pela lei. Aliás, nós os denominamos mais particularmente códigos, ou livros sagrados. Em seguida há uma outra espécie de livros que passam pelo contrato, a relação contratual burguesa. É esta a base da literatura leiga e da relação de venda do livro: eu compro, você me dá o que ler – uma relação contratual na qual todos, autor, leitor, estão presos. E há ainda outra espécie de livros, o livro político, de preferência revolucionário, que se apresenta como um livro de instituições, sejam presentes ou futuras. Toda espécie de mistura é feita: livros contratuais ou institucionais que são tratados como textos sagrados... etc. É que todos os tipos de codificação estão tão presentes, subjacentes, que os encontramos uns nos outros. Seja um outro exemplo, o da loucura: a tentativa de codificar a loucura é feita sob três formas. Primeiramente, as formas da lei, ou seja, do hospital, do asilo – é a codificação repressiva, é o confinamento, o antigo confinamento que será chamado no futuro a tornar-se uma última esperança de salvação, quando os loucos dirão: “Bons os tempos em que nos confinavam, pois hoje em dia se passam coisas piores”. Em seguida, houve uma espécie de golpe formidável, que foi o golpe da psicanálise: entendia-se que havia pessoas que escapavam à relação contratual burguesa tal como ela aparecia na medicina, e essas pessoas eram os loucos, porque estes não podiam ser partes contratantes, eram juridicamente “incapazes”. O golpe genial de Freud foi fazer passar sob a relação contratual uma parte dos loucos, no sentido mais amplo do termo, os neuróticos, e explicar que se podia fazer um contrato especial com eles (donde o abandono da hipnose). Ele é o primeiro a introduzir na psiquiatria, e é nisto finalmente que consiste a novidade psicanalítica, a relação contratual burguesa que até então fora excluída dela. E, em seguida, existem ainda as tentativas mais recentes, cujas implicações políticas e às vezes ambições revolucionárias são evidentes, as tentativas ditas institucionais. Encontra-se aí o tríplice meio de codificação: ou bem será a lei, e se não for a lei será a relação contratual, e se não for a relação contratual será a instituição. E sobre essas codificações florescem nossas burocracias.
Diante da maneira pela qual nossas sociedades se descodificam, pela qual os códigos escapam por todos os lados, Nietzsche é aquele que não tenta fazer recodificação. Ele diz: isto ainda não foi longe o bastante, vocês são apenas crianças (“A igualização do homem europeu é hoje o grande processo irreversível e deveríamos ainda acelerá-lo”). No nível daquilo que escreve e do que pensa, Nietzsche persegue uma tentativa de descodificação, não no sentido de uma descodificação relativa que consistiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou futuros, mas de uma descodificação absoluta – fazer passar algo que não seja codificável, embaralhar todos os códigos. Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo no nível da mais simples escrita e da linguagem. Só vejo semelhança com Kafka, com aquilo que Kafka faz com o alemão, em função da situação lingüística dos judeus de Praga: ele monta, em alemão, uma máquina de guerra contra o alemão; à força de indeterminação e de sobriedade, ele faz passar sob o código do alemão algo que nunca tinha sido ouvido. Quanto à Nietzsche, ele vive ou se considera polonês em relação ao alemão. Apodera-se do alemão para montar uma máquina de guerra que vai passar algo que não é codificável em alemão. É isso o estilo como política. De um modo mais geral, em que consiste o esforço de um tal pensamento, que pretende fazer passar seus fluxos por debaixo das leis, recusando-as, por debaixo das relações contratuais, desmentindo-as, por debaixo das instituições, parodiando-as? Volto rapidamente ao exemplo da psicanálise. Em que uma psicanalista tão original quanto Melanie Klein permanece, todavia, no sistema psicanalítico? Ela mesma o diz muito bem: os objetos parciais dos quais nos fala, com suas explosões, seus fluxos etc., são da ordem do fantasma. Os pacientes trazem estados vividos, intensamente vividos, e Melanie Klein os traduz em fantasmas. Existe aí um contrato, especificamente um contrato: dê-me seus estados vividos, eu lhe devolverei fantasmas. E o contrato implica uma troca, de dinheiro e de palavras. A esse respeito, um psicanalista como Winnicott mantém-se verdadeiramente no limite da psicanálise, porque tem o sentimento de que esse procedimento não convém mais num certo momento. Há um momento em que não se trata mais de traduzir, de interpretar, traduzir em fantasmas, interpretar em significados ou em significantes, não, não é isso. Há um momento em que será necessário partilhar, é preciso colocar-se em sintonia com o doente, é preciso ir até ele, partilhar seu estado. Trata-se de uma espécie de simpatia, de empatia, ou de identificação? Mesmo assim, isso é seguramente mais complicado. O que nós sentimos é antes a necessidade de uma relação que não seria nem legal, nem contratual, nem institucional. Com Nietzsche, é isso. Nós lemos um aforismo, ou um poema de Zaratustra. Ora, materialmente e formalmente, tais textos não são compreendidos nem pelo estabelecimento ou aplicação de uma lei, nem pela oferta de uma relação contratual, nem por uma instauração de instituição. O único equivalente concebível seria talvez “estar no mesmo barco”. Algo de pascaliano voltado contra Pascal. Embarcou-se: uma espécie de jangada da Medusa, há bombas que caem à volta, a jangada deriva em direção a riachos subterrâneos gelados, ou então em direção a rios tórridos, o Orenoco, o Amazonas, pessoas remam juntas, que não supõem que se amam, que se batem, que se comem. Remar juntos é partilhar, partilhar alguma coisa, fora de qualquer lei, de qualquer contrato, de toda instituição. Uma deriva, um movimento de deriva, ou de “desterritorialização”: eu o digo de uma maneira muito nebulosa, muito confusa, já que se trata de uma hipótese ou de uma vaga impressão sobre a originalidade dos textos nietzscheanos. Um novo tipo de livro.
Quais são, pois, as características de um aforismo de Nietzsche, para dar esta impressão? Há uma que Maurice Blanchot evidenciou particularmente em A conversa infinita (3). É a relação com o fora. De fato, quando se abre ao acaso um texto de Nietzsche, é uma das primeiras vezes que não passamos mais por uma interioridade, seja a interioridade da alma ou da consciência, a interioridade da essência ou do conceito, ou seja, daquilo que sempre fez o princípio da filosofia. O que faz o estilo da filosofia é o fato de que a relação com o exterior é sempre mediatizada e dissolvida por uma interioridade, em uma interioridade. Nietzsche, ao contrário, funda o pensamento, a escrita, sobre uma relação imediata com o fora. O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro. Um aforismo também é enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Ela começou acima, ou ao lado do quadro, e a linha atravessa o quadro. Como no filme de Godard, pinta-se o quadro com a parede. Longe de ser a delimitação da superfície pictórica, o quadro é quase o contrário, é o estabelecimento de uma relação imediata com o fora. Ora, conectar o pensamento ao fora é o que, ao pé da letra, os filósofos nunca fizeram, mesmo quando falavam de política, mesmo quando falavam de passeio ou de ar puro. Não basta falar de ar puro, falar do exterior, para conectar o pensamento diretamente e imediatamente ao fora.
“...Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem consideração, sem pretexto, estão aí com a rapidez do raio, tão terríveis, tão repentinos, tão convincentes, tão outros para serem até mesmo um objeto de ódio...” É o célebre texto de Nietzsche sobre os fundadores de Estados, “esses artistas com olhar de bronze” (Genealogia da moral, II, 17). Ou será que é Kafka, o de A Muralha da China? “Impossível chegar a compreender como penetraram até a capital, que está todavia tão longe da fronteira. Entretanto, estão aí, e cada manhã parece aumentar seu número (...). Conversar com eles, impossível. Não sabem nossa língua (...) carnívoros também seus cavalos!” (4). Dizemos, então, que tais textos são atravessados por um movimento que vem do fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro, e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais como eles acontecem habitualmente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa salta do livro, entra em contato com um puro fora. É isto, creio, o direito ao contra-senso para toda a obra de Nietzsche. Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, não tem significante como não tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um texto. Um aforismo é um estado de forças, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o diz muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a essa força. Desta maneira, não há problema de interpretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o texto de Nietzsche, procurar com qual força exterior atual ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia. A esse respeito, todos nós encontramos o problema levantado por certos textos de Nietzsche que têm uma ressonância fascista ou anti-semita... E já que se trata de Nietzsche hoje, devemos reconhecer que Nietzsche inspirou e inspira ainda muitos jovens fascistas. Houve um momento em que era importante mostrar que Nietzsche era utilizado, desviado, completamente deformado pelos fascistas. Isto foi feito na revista Acéphale, com Jean Wahl, Bataille, klossowski. Mas hoje talvez isto não seja mais um problema. Não é no nível dos textos que é preciso lutar. Não porque não se possa lutar nesse nível, mas porque essa luta não é mais útil. Trata-se antes de encontrar, de assinalar, de reunir as forças exteriores que dão a tal ou qual frase de Nietzsche seu sentido liberador, seu sentido de exterioridade. É no nível do método que se coloca a questão do caráter revolucionário de Nietzsche: é o método nietzscheano que faz do texto de Nietzsche, não mais alguma coisa a respeito da qual seria preciso se perguntar “é fascista, é burguês, é revolucionário em si?” – mas um campo de exterioridade em que se defrontam forças fascistas, burguesas e revolucionárias. E se colocarmos deste modo o problema, a resposta que está necessariamente em conformidade com o método é: encontre a força revolucionária (quem é além-do-homem?). Sempre um apelo a novas forças que vêm do exterior, e que atravessam e recortam o texto nietzscheano no quadro do aforismo. O contra-senso legítimo é isto: tratar o aforismo como um fenômeno à espera de novas forças que venham “subjugá-lo”, ou fazê-lo funcionar, ou então fazê-lo explodir.
O aforismo não é somente relação com o fora; tem, como segunda característica, a de ser uma relação com o intensivo. E é a mesma coisa. Sobre este ponto Klossowski e Lyotard disseram tudo. Esses estados vividos de que eu falava há pouco, para dizer que não se deve traduzi-los em representações ou em fantasmas, que não se deve fazê-los passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição, que não se deve converter em moeda, que é preciso, ao contrário, fazer deles fluxos que nos levam cada vez mais longe, mais para o exterior, são exatamente as intensidades. O estado vivido não é algo subjetivo, ou não o é necessariamente. Não é algo individual. É o fluxo, e o corte do fluxo, já que cada intensidade está necessariamente em relação com uma outra de tal modo que alguma coisa passe. É o que está sob os códigos, o que lhes escapa, e o que os códigos querem traduzir, converter, transformar em moeda. Mas Nietzsche, com sua escrita de intensidades, nos diz: não troquem as intensidades por representações. A intensidade não remete nem a significados que seriam como a representação de coisas, nem a significantes que seriam como representações de palavras. Então, qual é a sua consistência ao mesmo tempo como agente e como objeto de descodificação? É o que há de mais misterioso em Nietzsche. A intensidade tem algo que ver com os nomes próprios, e estes não são nem representações de coisas (ou pessoas), nem representações de palavras. Coletivos ou individuais, os pré-socráticos, os romanos, os judeus, o Cristo, o Anticristo, Júlio César, Bórgia, Zaratustra, todos esses nomes próprios que passam e retornam nos textos de Nietzsche, não são nem significantes nem significados, mas designações de intensidade, sobre um corpo que pode ser o corpo da Terra, o corpo do livro, mas também o corpo sofredor de Nietzsche: todos os nomes da história, sou eu... Há uma espécie de nomadismo, de deslocamento perpétuo de intensidades designadas por nomes próprios, e que penetram umas nas outras ao mesmo tempo em que são vividas sobre um corpo pleno. A intensidade só pode ser vivida em relação com sua inscrição móvel sobre um corpo, e com a exterioridade movente de um nome próprio, e é por isso que o nome próprio é sempre uma máscara, máscara de um operador.
O terceiro ponto é a relação do aforismo com o humor e a ironia. Aqueles que lêem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir freqüentemente, e sem dar gargalhadas às vezes, é como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da comunicação, todo o trágico da interioridade. Mesmo Max Brod, todavia, conta como os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E também Beckett é difícil ler sem rir, sem passar de um momento de alegria a um outro momento de alegria. O riso, e não o significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros, em vez de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se chamar isso de “cômico do além-do-humano”, ou então “palhaço de Deus”, há sempre uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis. Todo grande livro opera já a transmutação e faz a saúde de amanhã. Não se pode deixar de rir quando se embaralham os códigos. Se você colocar o pensamento em relação com o fora, nascem os momentos de riso dionisíaco, é o pensamento ao ar livre. Acontece com freqüência a Nietzsche encontrar-se diante de algo que considera repugnante, ignóbil, de causar vômito. E isto o faz rir, ele faria mais ainda se fosse possível. Ele diz: mais um esforço, ainda não está nojento o bastante, ou, então, é formidável como isto é nojento, é uma maravilha, uma obra-prima, uma flor venenosa, enfim, “o homem começa a tornar-se interessante”. Por exemplo, é assim que Nietzsche considera e trata aquilo que chama de a má consciência. Então há sempre comentadores hegelianos, comentadores da interioridade, que não possuem o senso do riso. Eles dizem: vejam, Nietzsche leva a sério a má consciência, faz dela um momento do devir-espírito da espiritualidade. A respeito daquilo que Nietzsche faz da espiritualidade, eles passam por cima porque sentem o perigo. Portanto, vê-se que, se Nietzsche dá direito a contra-sensos legítimos, todos aqueles que se explicam pelo espírito do sério, pelo espírito do pesado, pelo macaco de Zaratustra, ou seja, pelo culto da interioridade. O riso em Nietzsche remete sempre ao movimento exterior dos humores e das ironias, e este movimento é o das intensidades, das quantidades intensivas, tal como Klossowski e Lyotard o viram: a maneira pela qual há um jogo de intensidades baixas e intensidades elevadas, umas nas outras, a maneira pela qual uma intensidade baixa pode minar a mais elevada e mesmo ser tão elevada quanto a mais elevada, e inversamente. É este jogo de escalas intensivas que comanda as subidas da ironia e as quedas do humor em Nietzsche, e que se desenvolve como consistência ou qualidade do vivido em sua relação com o exterior. Um aforismo é uma matéria pura de riso e de alegria. Se não se encontrou aquilo que faz rir num aforismo, qual distribuição de humores e de ironias, e, do mesmo modo, qual repartição de intensidades, não se encontrou nada.
Existe ainda um último ponto. Voltemos ao grande texto de A Genealogia, sobre o Estado e os fundadores de impérios: “Eles chegam como o destino, sem causa, sem razão”...etc. (5). Pode-se reconhecer aí os homens da produção dita asiática. Sobre a base de comunidades rurais primitivas, o déspota constrói sua máquina imperial que sobrecodifica o todo, com uma burocracia, uma administração que organiza os grandes trabalhos e se apropria do trabalho excedente (“onde eles aparecem, em pouco tempo há algo de novo, uma engrenagem soberana, que é viva, em que partes e funções são delimitadas e determinadas em relação ao conjunto”...). Mas pode-se perguntar também se este texto não reúne duas forças que se distinguem sob outros aspectos – e que Kafka, por sua vez, distinguia e mesmo opunha em A Muralha da China. Com efeito, quando se investiga como as comunidades primitivas segmentárias deram lugar a outras formações de soberania, questão que Nietzsche coloca na segunda dissertação de A Genealogia, vê-se que se produzem dois fenômenos estritamente correlatos, mas absolutamente diferentes. É verdade que, no centro, as comunidades rurais estão presas e fixadas à máquina burocrática do déspota com seus escribas, seus padres, seus funcionários; mas, na periferia, as comunidades entram noutra espécie de aventura, numa outra espécie de unidade desta vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se descodificam em vez de se deixarem sobrecodificar. Grupos inteiros que partem, que nomadizam: os arqueólogos nos habituaram a pensar este nomadismo não como um estado primeiro, mas como uma aventura que sobrevém a grupos sedentários, o apelo do fora, o movimento. O nômade com sua máquina de guerra opõe-se ao déspota com sua máquina administrativa; a unidade nomádica extrínseca se opõe à unidade despótica intrínseca. E, todavia, eles são de tal modo correlatos ou interpenetrados que o problema do déspota será o de integrar, de interiorizar a máquina de guerra nômade, e o problema do nômade será o de inventar uma administração do império conquistado. Eles não param de se opor a ponto mesmo de se confundirem.
O discurso filosófico nasceu da unidade imperial através de muitos avatares, esses mesmos avatares que nos conduzem das formações imperiais à cidade grega. Mesmo através da cidade grega, o discurso filosófico permanece numa relação essencial com o déspota ou com a sombra do déspota, com o imperialismo, com a administração das coisas e das pessoas (encontraríamos todos os tipos de provas disto no livro de Léo Strauss e de Kojève sobre A Tirania (6)). O discurso filosófico sempre esteve numa relação essencial com a lei, a instituição, o contrato, que constituem o problema do Soberano e que atravessam a história sedentária das formações despóticas às democracias. O “significante” é verdadeiramente o último avatar filosófico do déspota. Ora, se Nietzsche não pertence à filosofia, é talvez porque ele é o primeiro a conceber um outro tipo de discurso como uma contrafilosofia. Ou seja, um discurso antes de tudo nômade, cujos enunciados não seriam produzidos por uma máquina racional administrativa que tem os filósofos como burocratas da razão pura, mas por uma máquina de guerra móvel. É talvez neste sentido que Nietzsche anuncia que uma nova política começa com ele (o que Klossowski denomina o complô contra sua própria classe). Sabe-se bem que em nossos regimes os nômades são infelizes: não se recua diante de nenhum meio para fixá-los, eles têm dificuldade para viver. E Nietzsche viveu como um desses nômades reduzidos à sua própria sombra, indo de pensão em pensão. Mas, de outro lado, o nômade não é forçosamente alguém que se movimenta: existem viagens num mesmo lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nômades não são aqueles que se mudam à maneira dos migrantes; ao contrário, são aqueles que não mudam, e põem-se a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar, escapando dos códigos. Sabe-se bem que o problema revolucionário, hoje, é o de encontrar uma unidade das lutas pontuais sem recair na organização despótica e burocrática do partido ou do aparelho de Estado: uma máquina de guerra que não reproduzisse um aparelho de Estado, uma unidade nomádica em relação com o Fora, que não reproduzisse a unidade despótica interna. Eis talvez o que é mais profundo em Nietzsche, a medida de sua ruptura com a filosofia, tal como ela aparece no aforismo: ter feito do pensamento uma máquina de guerra, ter feito do pensamento uma potência nômade. E mesmo se a viagem for imóvel, mesmo se for feita num mesmo lugar, imperceptível, inesperada, subterrânea, devemos perguntar quais são nossos nômades de hoje, que são realmente os nossos nietzscheanos?
Discussão
André Flécheux. – O que eu gostaria de saber é como [Deleuze] pensa fazer a economia da desconstrução, ou seja, como ele pensa contentar-se com uma leitura nomádica de cada aforismo, a partir da empiricidade, e como que de fora, o que me parece, de um ponto de vista heideggeriano, extremamente suspeito. Eu me pergunto se o problema da “já aí” que constitui a língua, a organização estabelecida, o que você chama de “o déspota”, permite compreender a escrita de Nietzsche como uma espécie de leitura errática que ela mesma dependeria de uma escrita errática, enquanto Nietzsche aplica a si mesmo o que ele denomina uma autocrítica e que as edições atuais o revelam como um excepcional trabalhador do estilo, para o qual, conseqüentemente, cada aforismo não é um sistema fechado, mas está implícito em toda uma estrutura de remissões. Este estatuto, em seu pensamento de um fora sem desconstrução, talvez se ligue ao da energética em Lyotard.
Segunda questão, que se articula ainda aqui com a primeira: numa época em que a organização estatal, capitalista, enfim, chamem-na como quiserem, lança um desafio que é finalmente aquilo que Heidegger chama da inspeção pela técnica, o senhor pensa sem rir que o nomadismo, tal como o senhor o descreve, constitui uma resposta séria?
Gilles Deleuze. – Se compreendo bem, o senhor diz que há motivos para se suspeitar de mim do ponto de vista heideggeriano. Alegro-me com isto. Quanto ao método de desconstrução dos textos, vejo bem o que ele é, admiro-o muito, mas ele nada tem que ver com o meu. Não me apresento, absolutamente, como um comentador de textos. Um texto, para mim, é apenas uma pequena engrenagem numa prática extratextual. Não se trata de comentar o texto por meio de um método de desconstrução, ou de um método de prática textual, ou de outros métodos, trata-se de ver para que isto serve na prática extratextual que prolonga o texto. O senhor pergunta se acredito na resposta dos nômades. Sim, eu creio. Genghis Khan, é alguma coisa. Ele vai ressurgir do passado? Não sei, em todo caso, sob outra forma. Do mesmo modo que o déspota interioriza a máquina de guerra nômade, a sociedade capitalista não pára de interiorizar uma máquina de guerra revolucionária. Não é na periferia (pois não há mais periferia) que se formam novos nômades. Eu perguntava de quais nômades, se necessário imóveis e no mesmo lugar, nossa sociedade é capaz.
André Flécheux: -- Sim, mas o senhor excluiu na sua exposição o que chamava de interioridade...
Gilles Deleuze: -- O senhor joga com a palavra “interioridade”...
André Flécheux: -- A viagem do dentro?
Gilles Deleuze: -- Eu disse “viagem imóvel”. Não é uma viagem do dentro, é uma viagem sobre o corpo, se for o caso, sobre corpos coletivos.
Mieke Taat: -- Gilles Deleuze, se eu o compreendi bem, o senhor opõe o riso, o humor e a ironia à má consciência. O senhor está de acordo que o riso de Kafka, de Beckett, de Nietzsche não exclui chorar por esses escritores, desde que as lágrimas não sejam as que jorram de uma fonte interior ou interiorizada, mas simplesmente de uma produção de fluxos na superfície do corpo?
Gilles Deleuze: -- Certamente, tem razão.
Mieke Taat: -- Ainda uma outra questão. Quando o senhor opõe o humor e a ironia à má consciência, não os distingue mais um do outro, como fazia em Lógica do sentido, onde um era de superfície e outro de profundidade. O senhor não teme que a ironia possa estar perigosamente próxima da má consciência?
Gilles Deleuze: -- Eu mudei. A oposição superfície-profundidade não me preocupa mais em absoluto. O que me interessa agora são as relações entre o corpo pleno, um corpo sem órgãos, e os fluxos que fluem.
Mieke Taat: -- Isto não excluiria mais o ressentimento, neste caso?
Gilles Deleuze: -- Oh, sim!
...
Tradução de
Milton Nascimento (7) e Luiz B. Orlandi
(1) Em Nietzsche aujourd’hui? T.1: intensités, Paris, UGE, 10/18, 1973, pp. 159-174. A respeito das discussões, foram mantidas apenas as questões apresentadas a Deleuze e transcritas nas pp. 185-187 e 189-190 da referida publicação. O colóquio “Nietzsche hoje?” desenrolou-se em julho de 1972 no Centro Cultural Internacional de Cerisy-la-Salle.
(2) Estudante de Liceu, de extrema-esquerda, ferido pela polícia durante manifestação em 1971.
(3) M. Blanchot, L’Entretien infini, Paris, Gallimard, 1969, p. 227 e seguintes.
(4) F. Kafka, La Muraille de Chine et autres récits, Paris, Gallimard, 1950, col. “Du Monde entier”, pp. 95-96.
(5) La Généalogie de la morale, II, § 17.
(6) L. Strauss, De la tyrannie, seguido de Tyrannie et sagesse, de Kojève, Paris, Gallimard, reedição de 1997.
(7) Parte da tradução brasileira originalmente publicada em Nietzsche hoje? – Colóquio de Cerisy, SP, Brasiliense, 1985, pp. 56-76.
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