Aula ministrada à Vincennes no dia 25/11/1980
É muito curioso verificar a que ponto a filosofia, até o fim do século XVII, fala-nos afinal, o tempo todo, de Deus. E no fim das contas, Spinoza, judeu excomungado, não é o último a nos falar de Deus. O primeiro livro da Ética, sua grande obra, chama-se "De Deus". E em todos, Descartes, Malebranche, Leibniz, tem-se a impressão de que a fronteira entre a filosofia e a teologia é extremamente vaga. Por que a filosofia comprometeu-se a tal ponto com Deus? Foi assim até o golpe revolucionário dos filósofos do século XVIII. Trata-se de um comprometimento ou de alguma coisa um tanto mais pura? Poderíamos dizer que a filosofia, até o fim do século XVII, deve sempre atender às exigências da Igreja, e que ela é portanto forçada a dar conta de muitos temas religiosos. Porém sentimos muito bem que seria demasiadamente fácil; poderíamos dizer igualmente que, até essa época, sua sorte está um tanto ligada a um sentimento religioso.
Eu vou retomar uma analogia com a pintura porque é verdade que a pintura está repleta de imagens de Deus. Minha questão é: basta dizer que se trata de um constrangimento inevitável nessa época? Há duas respostas possíveis. A primeira é sim, trata-se de um constrangimento inevitável dessa época que remete às condições da arte nessa época. Ou então dizer, um pouco mais positivamente, que é porque existe um sentimento religioso ao qual o pintor, e sobretudo a pintura, não escapam. Tampouco escapam dele a filosofia e o filósofo. Isso basta? Não seria possível uma outra hipótese, a saber, que nessa época a pintura tem tanta necessidade de Deus justamente porque o divino, longe de ser um constrangimento para o pintor, é o lugar de sua emancipação máxima? Em outras palavras, com Deus ele pode fazer seja lá o que for, ele pode fazer o que não poderia fazer com os humanos, com as criaturas. Assim, Deus é investido diretamente pela pintura, por uma espécie de fluxo de pintura, e, nesse nível, a pintura vai encontrar por sua conta uma espécie de liberdade que ela não teria encontrado de outra maneira. No limite, não existe oposição entre o pintor mais piedoso e esse mesmo pintor enquanto faz pintura e que é, de certa maneira, o mais ímpio, pois a maneira pela qual a pintura investe o divino é puramente pictural, onde a pintura encontra, precisamente, as condições de sua emancipação radical.
Dou três exemplos: El Greco... Essa criação, ele só poderia obtê-la a partir das figuras do cristianismo. Então é verdade que, num certo nível, havia constrangimentos se exercendo sobre eles, e num outro nível, o artista é aquele que - Bergson dizia isso do vivo, ele dizia que o vivo converte os obstáculos em meios, essa seria uma boa definição do artista. É verdade que há constrangimentos da Igreja que se exercem sobre o pintor, mas há transformação dos constrangimentos em meios de criação. Eles se servem de Deus para obter uma liberação das formas, para levar as formas até um ponto em que as formas já não têm nada a ver com uma ilustração. As formas se desencadeiam. Elas se lançam numa espécie de Sabá, uma dança muito pura, as linhas e as cores perdem toda necessidade de serem verossímeis, de serem exatas, de se assemelharem a qualquer coisa. É a grande liberação das linhas e das cores que se faz em favor dessa aparência: a subordinação da pintura às exigências do cristianismo.
Outro exemplo: uma criação do mundo... O Antigo Testamento lhes serve para uma espécie de liberação dos movimentos, das formas, das linhas e das cores. De tal maneira que, em certo sentido, o ateísmo jamais foi exterior à religião: o ateísmo é a potência-artista que trabalha a religião. Com Deus, tudo é permitido. Eu tenho o vivo sentimento de que com a filosofia foi exatamente a mesma coisa, e que se os filósofos nos falaram tanto sobre Deus - e eles podiam muito bem ser cristãos ou crentes -, não foi sem um intenso gracejo. Não era um gracejo de incredulidade, mas uma alegria do trabalho que eles estavam prestes a fazer.
Assim como, eu dizia, Deus e Cristo foram para a pintura uma extraordinária ocasião para liberar as linhas, as cores e os movimentos dos constrangimentos da semelhança, também para a filosofia Deus e o tema de Deus foram uma ocasião insubstituível para liberar aquilo que é o objeto de criação em filosofia - ou seja, os conceitos - dos constrangimentos que a simples representação das coisas lhes teria imposto... É no nível de Deus que o conceito é liberado, porque ele já não tem a tarefa de representar alguma coisa; ele torna-se a partir desse momento o signo de uma presença. Falando por analogia, ele assume linhas, cores e movimentos que ele não teria jamais sem esse desvio por Deus. É verdade que os filósofos sofrem os constrangimentos da teologia, mas em tais condições que, a partir desse constrangimento, eles irão produzir um fantástico meio de criação, a saber, eles vão arrancar dele uma liberação do conceito da qual ninguém poderá duvidar. Salvo no caso em que um filósofo vá longe demais ou com demasiada força. Será esse, talvez, o caso de Spinoza? Desde o início, Spinoza se colocou em condições segundo as quais o que ele nos dizia já não tinha mais nada a representar. Eis que aquilo que Spinoza irá chamar de Deus, no primeiro livro da Ética, será a coisa mais estranha do mundo: será o conceito capaz de reunir o conjunto de todas as possibilidades... Por meio do conceito filosófico de Deus realiza-se - e não podia realizar-se senão nesse nível - a mais estranha criação da filosofia como sistema de conceitos.
O que os pintores e os filósofos fizeram Deus padecer representa, seja a pintura como paixão, seja a filosofia como paixão. Os pintores fizeram o corpo de Cristo padecer uma nova paixão: eles o condensam, o contraem... A perspectiva é liberada de todo constrangimento de representar seja lá o que for, e para os filósofos é a mesma coisa. Eu tomo Leibniz como exemplo. Leibniz recomeça a criação do mundo. Ele retoma o problema clássico: saber qual é o papel do entendimento de Deus e da vontade de Deus na criação do mundo.
Suponhamos que Leibniz nos conte isto: Deus possui um entendimento, certamente um entendimento infinito. Ele não se assemelha ao nosso. A própria palavra "entendimento" seria equívoca. Ela não teria um único sentido, uma vez que o entendimento infinito não é em absoluto idêntico ao nosso próprio entendimento, que é um entendimento finito. No entendimento infinito, o que é que se passa? Antes que Deus crie o mundo, há por certo um entendimento, porém não há nada, não há mundo. Não, diz Leibniz, mas há os possíveis. Há possíveis no entendimento de Deus, e todos esses possíveis tendem à existência. Eis que a essência é, para Leibniz, uma tendência à existência, uma possibilidade que tende à existência. Todos esses possíveis pesam de acordo com sua quantidade de perfeição. O entendimento de Deus torna-se como que uma espécie de invólucro onde todos os possíveis descem e se chocam. Todos querem passar à existência. Mas Leibniz nos diz que isso não é possível, todos eles não podem passar à existência. Por quê? Porque cada um por sua conta poderia passar à existência, mas eles em sua totalidade não formam combinações compatíveis. Há incompatibilidades do ponto de vista da existência. Determinado possível não pode ser compossível com outro possível.
Eis a segunda etapa: ele está prestes a criar uma relação lógica de um tipo completamente novo: não há somente as possibilidades, há também os problemas de compossibilidade. Um possível é compossível com tal outro possível? Então qual é o conjunto de possíveis que passará à existência? Só passará à existência o conjunto de possíveis que, por sua conta, possuir a maior quantidade de perfeição. Os outros serão recalcados. É a vontade de Deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis. É um extraordinário descenso para a criação do mundo, e, em favor desse descenso, Leibniz cria todos os tipos de conceitos. Nem mesmo se pode dizer que esses conceitos sejam representativos, pois eles precedem as coisas a representar. E Leibniz lança sua célebre metáfora: Deus cria o mundo como quem joga xadrez, trata-se de escolher a melhor combinação. E o cálculo do xadrez irá dominar a visão leibniziana do entendimento divino. É uma criação de conceitos extraordinária, que encontra no tema de Deus a condição mesma de sua liberdade e de sua liberação. Ainda uma vez, do mesmo modo que o pintor servia-se de Deus para que as linhas, as cores e o movimento não fossem constrangidos a representar algo prévio, a reproduzir algo pronto [donner tout fait]. Não se trata de perguntar o que um conceito representa. É preciso perguntar qual é o seu lugar num conjunto de outros conceitos. Na maior parte dos grandes filósofos, os conceitos que eles criam são inseparáveis, e são tomados em verdadeiras seqüências. Se não compreendemos a seqüência da qual faz parte um conceito, não poderemos compreender o conceito. Eu emprego o termo seqüência porque faço uma espécie de aproximação com a pintura. Se de fato a unidade constituinte do cinema é a seqüência, acredito que, guardadas as proporções [toutes choses égales], poderia se dizer o mesmo do conceito e da filosofia.
No nível do problema do Ser e do Um, é verdade que os filósofos vão restabelecer uma seqüência em sua tentativa de criação conceitual sobre as relações entre o Ser e o Um. A meu ver, quem faz as primeiras grandes seqüências na filosofia, no nível dos conceitos, é Platão, na segunda parte do Parmênides. Há, com efeito, duas seqüências. A segunda parte do Parmênides é feita de sete hipóteses. Essas sete hipóteses se dividem em dois grupos: primeiramente três hipóteses, depois outras quatro. São duas seqüências. Primeiro tempo: suponhamos que o Um é superior ao Ser, que o Um está acima do Ser. Segundo tempo: o Um é igual ao Ser. Terceiro tempo: o Um é inferior ao Ser, e deriva do Ser. Jamais digam que um filósofo se contradiz; ao invés disso, perguntem: "Tal página, em que seqüência colocá-la, em que nível da seqüência?" E é evidente que o Um do qual Platão nos fala, segundo esteja situado no nível da primeira, da segunda ou da terceira hipótese, não é o mesmo.
Plotino, um discípulo de Platão, fala-nos num certo nível do Um como origem radical do Ser. Nesse caso, o Ser sai do Um. O Um faz Ser, portanto ele não é, ele é superior ao Ser. Essa será a linguagem da pura emanação: do Um emana o Ser. Ou seja, o Um não sai de si para produzir o Ser, pois se ele saísse de si ele se tornaria Dois; mas o Ser sai do Um. Essa é a fórmula mesma da causa emanante. Porém quando nos instalamos no nível do Ser, o mesmo Plotino irá nos falar em termos esplêndidos e em termos líricos do Ser que contém todos os seres, o Ser que compreende todos os seres. E ele emite toda uma série de fórmulas que terão uma grande importância para toda a filosofia do Renascimento. Ele dirá que o Ser complica todos os seres. É uma fórmula admirável. Porque é que o Ser complica todos os seres? Porque cada ser explica o Ser. Existe aí um dobrete: complicar, explicar. Cada coisa explica o Ser, mas o Ser complica todas as coisas, ou seja, compreende-as em si. Então essas páginas de Plotino já não se referem à emanação. Vocês se dirão que a seqüência evoluiu: ele está prestes a nos falar de uma causa imanente. E, com efeito, o Ser se comporta como uma causa imanente em relação aos seres, mas ao mesmo tempo o Um se comporta em relação ao Ser como uma causa emanante. E se descermos um pouco mais, veremos que há em Plotino, que entretanto não é cristão, alguma coisa que assemelha-se muito a uma causa criativa.
De certa maneira, se vocês não levarem em conta as seqüências, não saberão mais ao certo de que ele está falando. A menos que existam filósofos que destroem as seqüências porque querem fazer outra coisa. Uma seqüência conceitual seria o equivalente das nuanças em pintura. Um conceito muda de tom, ou no limite muda de timbre. Haveria aí como que timbres, tonalidades. Até Spinoza, a filosofia caminhou essencialmente por seqüências. E, nessa via, as nuanças que concernem à causalidade eram muito importantes. A causalidade original, a causa primeira, ela é emanante, imanente, criativa ou ainda alguma outra coisa? Assim, a causa imanente estava presente na filosofia o tempo todo, mas sempre como um tema que não ia até as últimas conseqüências. Por quê? Porque era sem dúvida o tema mais perigoso. Deus pode muito bem ser tratado como causa emanante, isso não traz nenhum problema, porque haverá ainda uma distinção entre a causa e o efeito. Mas tudo se torna muito mais difícil se Ele for tratado como causa imanente, de tal modo que não se saiba muito bem como distinguir a causa e o efeito, ou seja, Deus e a criatura. A imanência era antes de mais nada o perigo. Assim, a idéia de uma causa imanente aparece constantemente na história da filosofia, porém refreada, mantida num determinado nível da seqüência, carecendo de valor e devendo ser corrigida nos outros momentos da seqüência, pois a acusação de imanentismo foi, em toda a história das heresias, a acusação fundamental: "Você confunde Deus e a criatura". Essa é a acusação para a qual não há perdão. Portanto a causa imanente estava constantemente em jogo, mas não chegava a receber um estatuto. Ela só tinha um pequeno lugar na seqüência dos conceitos.
Chega Spinoza. Ele havia sido precedido sem dúvida por todos aqueles que tiveram mais ou menos audácia no que concerne à causa imanente, isto é, essa causa bizarra que não apenas permanece em si para produzir, mas cujos produtos permanecem nela. Deus está no mundo, o mundo está em Deus. Na Ética, creio que a Ética está construída sobre uma primeira grande proposição que se poderia chamar a proposição especulativa ou teórica. A proposição especulativa de Spinoza é: só existe uma única substância absolutamente infinita, ou seja, que possui todos os atributos, e aquilo que se chama de criaturas não são criaturas, mas os modos ou maneiras de ser dessa substância. Portanto, uma única substância possuindo todos os atributos e cujos produtos são os modos, as maneiras de ser. Desde então, se eles são as maneiras de ser da substância que possui todos os atributos, esses modos existem nos atributos da substância. Eles estão compreendidos nos atributos.
Todas as conseqüências aparecem imediatamente. Não há nenhuma hierarquia nos atributos de Deus, da substância. Por quê? Se a substância possui igualmente todos os atributos, não existe hierarquia entre os atributos, um não vale mais do que o outro. Em outros termos, se o pensamento é um atributo de Deus e se a extensão é um atributo de Deus ou da substância, não haverá nenhuma hierarquia entre o pensamento e a extensão. Todos os atributos terão o mesmo valor a partir do momento em que eles são atributos da substância. Ainda permanecemos no abstrato. É a figura especulativa da imanência.
Tiro daí algumas conclusões. É isso que Spinoza irá chamar de Deus. Ele chama isso de Deus porque se trata do absolutamente infinito. O que isso representa? É muito curioso. Pode-se viver dessa maneira? Tiro daí duas conseqüências. Primeira conseqüência: ele é quem ousa fazer o que muitos tiveram o desejo de fazer, a saber, liberar completamente a causa imanente de qualquer subordinação a outros processos de causalidade. Só existe uma causa, a causa imanente. E isso tem uma influência sobre a prática. Spinoza não intitula seu livro "Ontologia", ele é demasiadamente sagaz para isso, ele o intitula "Ética". E essa é uma maneira de dizer que, qualquer que seja a importância de minhas proposições especulativas, vocês só poderão julgá-las no nível da ética que elas envolvem ou implicam. Ele libera completamente a causa imanente com a qual, até aí, haviam lidado os judeus, os cristãos, os heréticos, porém no interior de seqüências muito precisas de conceitos. Spinoza arranca-a de todas as seqüências e faz uma violenta apropriação [coup de force] no nível dos conceitos. Já não há mais seqüência. Posto que ele extraiu a causalidade imanente da seqüência das grandes causas, das causas primeiras, posto que ele aplanou tudo sobre uma substância absolutamente infinita que possui todos os atributos e compreende todas as coisas como seus modos, ele substituiu a seqüência por um verdadeiro plano de imanência. É uma revolução conceitual extraordinária: em Spinoza tudo se passa como que sobre um plano fixo. Um extraordinário plano fixo que não será de modo algum um plano de imobilidade, pois todas as coisas irão se mover - e para Spinoza só o movimento das coisas conta - sobre esse plano fixo. Ele inventa um plano fixo. A proposição especulativa de Spinoza é essa: arrancar o conceito do estado de variações de seqüências e projetar tudo sobre um plano fixo que é o da imanência. Isso implica uma técnica extraordinária.
Viver num plano fixo é também um certo modo de vida. Eu não vivo mais segundo seqüências variáveis. Então, viver sobre um plano fixo, o que seria isso? É Spinoza polindo suas lentes, ele que tudo abandonou, sua herança, sua religião, todo êxito social. Ele não faz nada e antes mesmo que tenha escrito seja lá o que for, é injuriado, denunciado. Spinoza é o ateu, o abominável. Ele praticamente não pode publicar. Ele escreve cartas. Ele não queria ser professor. No "Tratado Político" ele concebe o magistério como uma atividade não remunerada, e mais ainda, diz que seria preciso pagar para ensinar. Os professores ensinariam arriscando sua fortuna e sua reputação. Um verdadeiro professor público seria isso. Spinoza relaciona-se com um grande grupo de estudantes, ele envia-lhes a Ética à medida que a escreve, e eles explicam os textos de Spinoza uns para os outros, e escrevem a Spinoza, que responde. São pessoas muito inteligentes. Essa correspondência é essencial. Ele tem sua pequena rede. Denunciado em toda parte, ele se preserva graças à proteção dos irmãos De Witt.
É como se ele inventasse o plano fixo no nível dos conceitos. A meu ver, é a mais fundamental tentativa de dar um estatuto à univocidade do Ser, um Ser absolutamente unívoco. O Ser unívoco é precisamente o que Spinoza define como sendo a substância tendo todos os atributos iguais, tendo todas as coisas como modos. A substância absolutamente infinita é o Ser enquanto Ser, os atributos todos iguais uns aos outros são a essência do Ser - e aqui temos essa espécie de plano sobre o qual tudo é aplanado e onde tudo se inscreve.
Nenhum filósofo foi tratado por seus leitores como Spinoza o foi, graças a Deus. Spinoza foi um desses autores essenciais, por exemplo, para o romantismo alemão. Ora, mesmo esses autores tão cultos nos dizem algo muito curioso. Eles dizem que a Ética é a obra que nos apresenta a totalidade mais sistemática, é o sistema levado ao absoluto, é o Ser unívoco, o Ser que não se diz a não ser em um único sentido. É a ponta extrema do sistema. É a totalidade mais absoluta. E também dizem, ao mesmo tempo, que quando lemos a Ética temos sempre o sentimento de que não chegamos a compreender o conjunto. O conjunto nos escapa. Não somos suficientemente rápidos para reter tudo conjuntamente. Há uma página muito bela de Goethe em que ele diz que releu dez vezes a mesma coisa e que ele nunca compreende o conjunto; cada vez que eu o leio eu compreendo uma outra parte. Spinoza é o filósofo cujo aparelho conceitual está entre os mais sistemáticos de toda a filosofia. E, no entanto, nós leitores temos sempre a impressão de que o conjunto nos escapa e que estamos reduzidos a sermos tomados por esta ou aquela parte. Somos verdadeiramente tomados por esta ou aquela parte. Num outro nível, ele é o filósofo que leva mais longe o sistema de conceitos, e portanto exige uma cultura filosófica muito grande. O início da Ética começa com definições: da substância, da essência, etc. Isso remete a toda a escolástica e ao mesmo tempo não há filósofo que possa, como ele, ser lido sem que se saiba absolutamente nada. E é preciso manter ambos. Vamos, pois, compreender esse mistério. (Victor) Delbos diz que Spinoza é um grande vento que nos arrasta. Isso combina bem com a minha história do plano fixo. Poucos filósofos tiveram esse mérito de aceder ao estatuto de um grande vento calmo. E os miseráveis, os pobres tipos que lêem Spinoza, o comparam a rajadas que nos assaltam. Como conciliar a existência de uma leitura analfabeta e de uma compreensão analfabeta de Spinoza com esse outro fato, o de que Spinoza seja, repito, um dos filósofos que constituíram o aparelho conceitual mais minucioso do mundo? Existe aqui um êxito no nível da linguagem.
A Ética é um livro que Spinoza considera como terminado. Ele não publicou o seu livro porque sabia que, se o publicasse, seria preso. Todo mundo lhe cai em cima, ele já não tem um protetor (1). As coisas vão muito mal para ele. Ele renunciou à publicação, mas em certo sentido isso não tinha importância, pois seus alunos já possuíam o texto. Leibniz conhecia o texto.
De que é feito esse texto? Ele começa pela Ética demonstrada à maneira geométrica. É o emprego do método geométrico. Muitos autores já empregaram esse método, mas geralmente em uma seqüência na qual uma proposição filosófica é demonstrada à maneira de uma proposição geométrica, de um teorema. Spinoza arranca-o do estado de um momento numa seqüência e fará dele o método completo de exposição da Ética. De modo que a Ética se divide em cinco livros. Ela começa com definições, axiomas, proposições ou teoremas, demonstrações do teorema, corolário do teorema, etc. É isso o grande vento, formando uma espécie de camada [nappe] contínua. A exposição geométrica já não é em absoluto a expressão de um momento numa seqüência, ele pode livrar-se dela completamente porque o método geométrico será o processo que consiste em preencher o plano fixo da substância absolutamente infinita. Portanto, um grande vento calmo. E em tudo isso há um encadeamento contínuo de conceitos, cada teorema remete a outros teoremas, cada demonstração remete a outras demonstrações.
(1) Os irmãos De Witt foram assassinados em 1672. (N. do T.)
Tradução: Francisco Traverso Fuchs
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