17 de outubro de 2011

“O atual e o virtual” por Gilles Deleuze

A filosofia é a teoria das multiplicidades. Toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. Essa névoa eleva-se de circuitos coexistentes mais ou menos extensos, sobre os quais se distribuem e correm as imagens virtuais. É assim que uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens. Eles são ditos virtuais à medida que sua emissão e absorção, sua criação e destruição acontecem num tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável, e à medida que essa brevidade os mantém, conseqüentemente, sob um princípio de incerteza ou de indeterminação. Todo atual rodeia-se de círculos sempre renovados de virtualidades, cada um deles emitindo um outro, e todos rodeando e reagindo sobre o atual (“no centro da nuvem do virtual está ainda um virtual de ordem mais elevada... cada partícula virtual rodeia-se de seu cosmo virtual, e cada uma por sua vez faz o mesmo indefinidamente...” (1). Em virtude da identidade dramática dos dinamismos, uma percepção é como uma partícula: uma percepção atual rodeia-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que se distribuem sobre circuitos moventes cada vez mais distantes, cada vez mais amplos, que se fazem e se desfazem. São lembranças de ordens diferentes: diz-se serem imagens virtuais à medida que sua velocidade ou sua brevidade as mantém aqui sob um princípio de inconsciência.

As imagens virtuais são tão pouco separáveis do objeto atual quanto este daquelas. As imagens virtuais reagem portanto sobre o atual. Desse ponto de vista, elas medem, no conjunto dos círculos ou em cada círculo, um continuum, um spatium determinado em cada caso por um máximo de tempo pensável. A esses círculos mais ou menos extensos de imagens virtuais correspondem camadas mais ou menos profundas do objeto atual. Estes formam o impulso total do objeto: camadas elas mesmas virtuais, e nas quais o objeto atual se torna por sua vez virtual (2). Objeto e imagem são ambos aqui virtuais, e constituem o plano de imanência onde se dissolve o objeto atual. Mas o atual passou assim por um processo de atualização que afeta tanto a imagem quanto o objeto. O continuum de imagens virtuais é fragmentado, o spatium é recortado conforme decomposições regulares ou irregulares do tempo. E o impulso total do objeto virtual quebra-se em forças que correspondem ao continuum parcial, em velo cidades que percorrem o spatium recortado (3). O virtual nunca é independente das singularidades que o recortam e dividem-no no plano de imanência. Como mostrou Leibniz, a força é um virtual em curso de atualização, tanto quanto o espaço no qual ela se desloca. O plano divide-se então numa multiplicidade de planos, segundo os cortes do continuum e as divisões do impulso que marcam uma atualização dos virtuais. Mas todos os planos formam apenas um único, segundo a via que leva ao virtual. O plano de imanência compreende a um só tempo o virtual e sua atualização, sem que possa haver aí limite assimilável entre os dois. O atual é o complemento ou o produto, o objeto da atualização, mas esta não tem por sujeito senão o virtual. A atualização pertence ao virtual. A atualização do virtual é a singularidade, ao passo que o próprio atual é a individualidade constituída. O atual cai para fora do plano como fruto, ao passo que a atualização o reporta ao plano como àquilo que reconverte o objeto em sujeito.

Consideramos até o momento o caso em que um atual rodeia-se de outras virtualidades cada vez mais extensas, cada vez mais longínquas e diversas: uma partícula cria efêmeros, uma percepção evoca lembranças. Mas o movimento inverso também se impõe: quando os círculos se estreitam, e o virtual aproxima-se do atual para dele distinguir-se cada vez menos. Atinge-se um circuito interior que reúne tão-somente o objeto atual e sua imagem virtual: uma partícula atual tem seu duplo virtual, que dela se afasta muito pouco; a percepção atual tem sua própria lembrança como uma espécie de duplo imediato, consecutivo ou mesmo simultâneo. Com efeito, como mostrava Bergson, a lembrança não é uma imagem atual que se formaria após o objeto percebido, mas a imagem virtual que coexiste com a percepção atual do objeto. A lembrança é a imagem virtual contemporânea ao objeto atual, seu duplo, sua “imagem no espelho” (4). Há também coalescência e cisão, ou antes oscilação, perpétua troca entre o objeto atual e sua imagem virtual: a imagem virtual não pára de tornar-se atual, como num espelho que se apossa do personagem, tragando-o e deixando-lhe, por sua vez apenas uma virtualidade, à maneira d’A dama de Xangai. A imagem virtual absorve toda a atualidade do personagem, ao mesmo tempo que o personagem atual nada mais é que uma virtualidade. Essa troca perpétua entre o virtual e o atual define um cristal. É sobre o plano de imanência que aparecem os cristais. O atual e o virtual coexistem, e entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro. Não é mais uma singularização, mas uma individuação como processo, o atual e seu virtual. Não é mais uma atualização, mas uma cristalização. A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito. Não há mais inassinalabilidade do atual e do virtual, mas indiscernibilidade entre os dois termos que se intercambiam.

Objeto atual e imagem virtual, objeto tornado virtual e imagem tornada atual: são essas as figuras que já aparecem na óptica elementar (5). Mas, em todos os casos, a distinção entre o virtual e o atual corresponde à cisão mais fundamental do Tempo, quando ele avança diferenciando-se segundo duas grandes vias: fazer passar o presente e conservar o passado. O presente é um dado variável medido por um tempo contínuo, isto é, por um suposto movimento numa única direção: o presente passa à medida que esse tempo se esgota. É o presente que passa, que define o atual. Mas o virtual aparece por seu lado num tempo menor do que aquele que mede o mínimo de movimento numa direção única. Eis por que o virtual é “efêmero”. Mas é também no virtual que o passado se conserva, já que o efêmero não cessa de continuar no “menor” seguinte, que remete a uma mudança de direção. O tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável numa direção é também o mais longo tempo, mais longo do que o máximo de tempo contínuo pensável em todas as direções. O presente passa (em sua escala), ao passo que o efêmero conserva e conserva-se (na sua escala). Os virtuais comunicam-se imediatamente por cima do atual que os separa. Os dois aspectos do tempo, a imagem atual do presente que passa e a imagem virtual do passado que se conserva, distinguem-se na atualização, tendo simultaneamente um limite inassinalável, mas intercambiam-se na cristalização até se tornarem indiscerníveis, cada um apropriando-se do papel do outro.

A relação do atual com o virtual constitui sempre um circuito, mas de duas maneiras: ora o atual remete a virtuais como a outras coisas em vastos circuitos, onde o virtual se atualiza, ora o atual remete ao virtual como a seu próprio virtual, nos menores circuitos onde o virtual cristaliza com o atual. O plano de imanência contém a um só tempo a atualização como relação do virtual com outros termos, e mesmo o atual como termo com o qual o virtual se intercambia. Em todos os casos, a relação do atual com o virtual não é a que se pode estabelecer entre dois atuais. Os atuais implicam indivíduos já constituídos, e determinações por pontos ordinários; ao passo que a relação entre o atual e o virtual forma uma individuação em ato ou uma singularização por pontos relevantes a serem determinados em cada caso.


NOTAS
(1) Michel Cassé, Du vide et de la création, Editions Odile Jacob, pp. 72-73. E o estudo de Pierre Lévy, Qu’est-ce que le virtuel?, Éd. de la Découverte.
(2) Bergson, Matière et mémoire, Éd. du Centenaire, p. 250 (os capítulos II e III analisam a virtualidade da lembrança e sua atualização).
(3) Cf. Gilles Châtelet, Les Enjeux du mobile, Éd. du Seuil, pp. 54-68 (das “velocidades virtuais” aos “recortes virtuais”).
(4) Bergson, L’Énergie spirituelle, “a lembrança do presente...”, pp. 917-920. Bergson insiste nos dois movimentos, em direção a círculos cada vez mais amplos, em direção a um círculo cada vez mais estreito.
(5) A partir do objeto atual e da imagem virtual, a óptica mostra em que caso o objeto se torna virtual, e, a imagem, atual; mostra depois como o objeto e a imagem se tornam ambos atuais, ou ambos virtuais.

Tradução Heloisa B.S. Rocha


Texto originalmente publicado em anexo à nova edição de Dialogues, de Gilles Deleuze e Claire Parnet (Paris, Flammarion, 1996).

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